Crónicas

«Tenho a certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer.»

(Clarice Lispector)

Clarice Lispector é uma mulher de dezembro. E neste dezembro, a dez, passaram 100 anos sobre o seu nascimento. No dia anterior, nove de dezembro, passaram 43 da sua morte. Clarice não consentiu em fazer anos.

A mulher que é hoje considerada um dos maiores nomes da literatura brasileira do séc. XX não nasceu Clarice, mas Chaya. Nem nasceu no Brasil. Nasceu em Tchetchelnik, zona sudeste da Ucrânia, na altura ainda território russo. A família, de origem judia, fugiu dos terríveis e sucessivos pogroms, ataques muito violentos contra a população judia e que vitimaram dezenas de milhares de pessoas. Estes ataques organizados eram perpetrados por elementos dos exércitos russos, muitas vezes com a cooperação das autoridades locais, e eram muito recorrentes. Num desses ataques a Mãe de Clarice foi violada e contraiu sífilis, o que acabou por provocar a sua morte. Clarice Lispector é resultado de uma tentativa de recuperação da doença, já que se acreditava que o nascimento de uma criança poderia curar da doença. Quando Clarice chegou ao Brasil, tinha dois anos e dois meses, mas sempre preferiu estabelecer o seu nascimento em 1922 e sublinhar que havia chegado ao Brasil apenas com dois meses, não porque quisesse subtrair dois anos à sua idade, mas porque a vontade de pertença era avassaladora: queria ser considerada uma autora brasileira. Não queria a estranheza de ser estrangeira. (A vida de) Clarice Lispector lembra-nos que as nossas pertenças são múltiplas, que nunca somos só de uma só parte, somos uma amálgama de lugares e diferentes histórias que se cruzaram antes de nós e depois connosco.

Na sua última entrevista, Clarice Lispector recusa revelar que autores ou autoras influenciaram a sua escrita; diz que escolhia as leituras que fazia pelos títulos e que acabava por misturar tudo. Não sabia a quem pertencia o quê. Mas certo é que há um autor que muito claramente está presente nos seus escritos: Bento de Espinosa (1632-1677), também ele pertencente a uma família judaica fugida de Portugal e que se estabeleceu em Amsterdão, graças à perseguição movida pela Inquisição às pessoas judias, e que foi um dos maiores filósofos do séc. XVII. Na escrita de Clarice, tal como nos escritos do filósofo, encontramos uma profunda proximidade com a natureza e necessidade de compreender a natureza – que é, segundo Espinosa, a forma como Deus se expressa (e não resultado da sua criação). Em ambos encontramos um movimento de descentramento do humano, que é tido como uma parte integrante da natureza, uma expressão do divino. Terá sido a condição de refugiados, a condição de quem não se está desde sempre no centro de uma pertença que não oferece dúvidas, que terá contribuído, tanto no filósofo como na escritora, para esta noção de que fazemos parte de um todo de diferentes maneiras, sem que uma tenha de se sobrepor triunfantemente às outras? Terá sido o começo como nómadas que os terá impedido de sentirem a vertigem de recusar ao outro ser a dignidade que lhe é devida? Certo é que tanto os Países Baixos como o Brasil, ao acolherem as famílias nómadas de Espinosa e de Clarice, que fugiam da fúria dos seus, ganharam.

Clarice Lispector é uma mulher de dezembro. Tal como Jesus o é, o nascimento de quem por esta altura celebramos com rituais que variam de região para região. Também ele e a família tiveram de partir à procura de refúgio para escapar à ira de uns sobre os outros. Também aquela família foi escorraçada de todas as portas a que bateu. Lembramo-nos suficientes vezes disto quando preparamos e celebramos o Natal?

Todos e todas nós vivemos em duas ilhas, a da Madeira e a do Porto Santo, que não eram habitadas por humanos. Num sentido radical, somos estrangeiros/as num território que não começou por ser nosso. Serve este exercício para tentarmos suavizar a nossa tendência para o sentimento de posse: a terra que dizemos perentoriamente que é nossa (e que não é dos outros) afinal também não foi nossa desde sempre. Se partirmos deste ponto de partida sem solo se calhar suavizamos a forma como vemos as pessoas que chegam carregadas de medos e sonhos, muitas delas de regresso. Se partirmos do pressuposto que somos todos e todas estrangeiras, se calhar conseguimos combater eficazmente a sanha causada pela ideia de posse (da terra, da língua, dos empregos, das pessoas) e ter a capacidade de compreender o desejo de pertença a quem sente que lhe foi e é recusada essa pertença.

Diz-me o meu filho que se o Pai Natal só me trazia um brinquedo, era certamente porque me portava mal. A conclusão sobre o meu suposto mau comportamento deu-se durante uma troca de argumentos em que os tentava convencê-lo de que o Pai Natal apenas trazia duas prendas a cada criança porque são mesmo muitas crianças: um brinquedo e um livro (o Pai Natal que o meu filho conhece oferece a todas as crianças também um livro porque quer que todas as crianças aprendam a gostar de ler).

Também tem sido cada vez mais tema de conversa a possibilidade da sua inexistência pelo que a dúvida lhe aguça cada vez mais a curiosidade; argumenta ele que ninguém teria tanto dinheiro para distribuir presentes por todas, mas mesmo todas as crianças do mundo. No outro dia, em conversa com o pai de um amigo, a crença tremeu perigosamente (julgamos até ter ficado irremediavelmente perdida), mas conseguimos restabelecê-la por mais algum tempo.

Não tenho a certeza de que no próximo ano o meu filho ainda acredite no Pai Natal. Mas pelo menos neste Natal ainda há lugar para a expetativa e a crença de que há pelo menos uma noite no ano em que todas as crianças têm direito a ser crianças por igual.

Por mim desejo que tenhamos a capacidade de não perder de vista o essencial.

Boas Festas.

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