Crónicas

As férias e os amigos

Ainda fui à marina beber um refresco com a Raquel, que tinha ficado em terra como eu e sabia o que custava.

Lembro-me bem das férias da Páscoa de 1988, lembro-me do sol e do escaldão nas costas, o primeiro banho de mar no Lido, onde fui umas vezes. Tinha 17 anos, um corte de cabelo à moda e não fui à confissão da Semana Santa em protesto. A minha mãe não me deixou sequer sonhar com a viagem de finalistas do liceu e eu retaliei. À confissão iam as beatas e, por mim, não voltava a fazer o número de ensaiar os pecados para contar ao padre.

A minha mãe fez-me um sermão, aquilo do bom caminho, da fé em Nosso Senhor, mas entrou a 100 e saiu a mil. E eu fui ao Lido treinar o bronzeado que, nesse tempo, se usava bem carregado e escuro. Só não me lembro como foi a missa, se me fiquei pelo sábado de aleluia ou se fui às cerimónias de Sexta-Feira Santa. A paixão de Cristo metia medo, a mim dava-me medo desde a vez que a minha tia Teresa me levara a ver a procissão em Santo António. A marcha fúnebre ao entardecer provocava calafrios.

E eu tinha 17 anos, sentia-me bonita, como se tivesse acertado o passo com tempo, com os outros e não me interessava a via sacra, nem o luto penoso dos concertos de música clássica na televisão e na rádio. O que queria era estar no sul de Espanha, em Canárias ou no Porto Santo – o destino podia ser qualquer um – numa viagem de finalistas, longe de casa e a dormir num hotel com piscina e pequeno almoço de croissants com fiambre e café com leite.

Como seria bom ter roupa comprada por lá e gel de banho com cheiro a morango, daquele que deixava um cheiro a fruta na pele queimada da praia. A viagem de autocarro e o avião, os amigos que podia fazer, quem sabe até descobrir um príncipe encantado e alimentar a paixão com cartas e telefonemas às escondidas. O meu irmão tinha arranjado uma amiga basca em Benidorm, a tal que às vezes telefonava.

Não havia viagem, nem príncipe, nem amigos e eu continuava sem saber como era um avião por dentro e como era o mundo além do Porto Santo, onde fora passear uma vez com a minha tia Conceição. A minha viagem de finalistas era ao Lido e ao cinema, com amêndoas e torrões, inhame e atum na Sexta-Feira Santa. Não ir à confissão ainda passava, falta de respeito ao jejum até azar dava. De modo que, além do Lido, li de uma assentada o ‘Nome da Rosa’, que era um livro grosso e estava na moda, e os ‘Capitães da Areia’. E sei isto porque foram dos primeiros livros que comprei.

Ainda fui à marina beber um refresco com a Raquel, que tinha ficado em terra como eu e sabia o que custava. A Raquel sabia o que custava tudo: não ter as roupas, não ter as malas, os sapatos, não ir na viagem. E gostava de ler, de ir ao cinema e ainda me ensinava as letras das músicas que tocavam na rádio. E não era preciso fingir, esconder ou evitar assuntos, as nossas vidas assemelhavam-se, as nossas mágoas também.

A conversa na marina, de frente para o mar e para os barcos, não teve de certeza a aventura e o glamour da viagem de finalistas, mas fez-nos mais amigas e cúmplices. Lembro-me bem das férias da Páscoa de 1988, tinha 17 anos, lia os primeiros livros comprados por mim e, na verdade, não precisava de mais amigos. Eu tinha ali uma amiga, mesmo ao lado, que percebia a minha vida como eu entendia a dela e não era preciso fingir. Naquelas férias e nos últimos 30 anos.