Crónicas

Isto de ser lento e ter azar

Sou lenta, foi o que ouvi a minha prima Ana dizer à minha mãe e, entre as duas, não há alguém mais inteligente na família.

Uma monarca, uma daquelas borboletas grandes e vistosas, pousou no jardim, a minha mãe diz que dão azar, mas deve ser mais ou menos como os gatos pretos ou o número 13. Eu gosto de borboletas, de gatos e se tivesse medo do 13 teria de passar por cima dos meus 13 anos, o que não dá jeito. Quer dizer são muitos os dias em que me acho feia e infeliz, mas sei que para chegar aos 14 tenho de passar os 13.

Azar é não ter nascido magra, linda, sei lá, podia ter algum atributo, um dom como cantar, era bom ter uma voz afinada, podia ser a primeira voz no coro da igreja, mas a última vez que cantei para uma sala cheia foi em casa da minha tia Alice, devia ter uns cinco anos. E cantei aquela da Gaivota, que voava e voava. O meu primo Vítor esmoreceu de riso, é que eu canto mesmo mal. O que é injusto. Herdei quase tudo da minha mãe – a cor da pele e do cabelo -, menos a voz.

A minha mãe canta bem, apanha tudo de ouvido, até as músicas da Tina Turner e não sabe uma palavra de Inglês, mas tem ouvido e eu não. Eu às vezes penso que não é só o ouvido para a música que me falta. Também podia ser assim pequenina e magra como a minha mãe, ter aquele génio de saber fazer contas de cabeça assim num instante. É que a mim custa-me. Ou conto pelos dedos ou faço a conta com lápis e papel.

Sou lenta, foi o que ouvi a minha prima Ana dizer à minha mãe e, entre as duas, não há alguém mais inteligente na família. Eu acho que é por causa disto das contas que sou lenta se bem que há outros assuntos que não apanho assim à primeira. Por exemplo, na escola, nunca sei quais são os populares e os bonitos e não entendo nada de namoros, de quem olha para quem. É que mesmo difícil de entender, normalmente quando parecem desentender-se na verdade estão apaixonados.

E depois existe um código de ficar a olhar que é confuso e não me parece bem, eu que não gosto que me olhem assim a direito como se me quisessem ver a alma. Não é que me tenha acontecido, se acontecer vou morrer de vergonha, vou corar até às orelhas e fugir, vou esconder-me no meu quarto e rezar para que a minha mãe não perceba. Só que a minha mãe é inteligente, tenho a impressão sabe tudo de mim.

Tudo, tudo é capaz de ser exagerado, até costuma dizer que tenho pensamentos secretos, verdadeiros mistérios, mas isso é porque não lhe conto que, na última semana, tive quatro paixonetas seguidas, dois eles eram cantores da revista Bravo, que vi umas vezes no intervalo das aulas. Os outros apareceram na televisão, são actores e vivem na América, acho que estão a uma distância aceitável. Também não lhe contei os meus planos para escalar o Evereste, que vi num documentário.

Tenho planos desses muitas vezes quando me deixo ficar a ver as lagartixas a correr por cima do muro ou sigo o voo das borboletas que cruzam o jardim. Ou quando finjo que estudo para os pontos só para escapar à obrigação de lavar a loiça e arrumar a cozinha depois do almoço. A tarde está quase a acabar, a loiça continua dentro da pia e a minha mãe vai entrar a matar, vai gritar, dizer que sou lenta e preguiçosa, mas está tão bonito, uma tarde de céu azul e a monarca, aquela borboleta grande e vistosa, levanta voo. E eu sei, não dão azar, o que é bonito não dá azar.