Crónicas

Chorar os mortos sem fé nos vivos

É tempo de chorar os mortos sem ter grande fé nos vivos. Naqueles que decidem o que é ou não importante. Naqueles que escolhem qual é a pilha de papéis prioritária e qual é a que pode esperar.

Há tragédias que se evitam. Há alertas que surgem e que não podem, pura e simplesmente, ser ignorados. Não se pode deixar ao acaso, ou nas mãos de Deus, os destinos de uma sociedade. Há responsabilidades que se assumem. Há respostas que têm de ser dadas. Para isso é preciso ouvir. Entender. Ir ao terreno e verificar. Pensar no pior que pode acontecer se as coisas ficarem na mesma, ou se forem apenas remediadas.

Há tragédias que se evitam se aqueles que se dizem habilitados para gerir os destinos de uma sociedade ouvissem mais. Percebessem mais. Atuassem mais.

Os mortos do Monte e um monte de mortos. Quem foi o culpado? A quem é que devemos apontar o dedo e exigir responsabilidades? São quantos? E porque deixaram acontecer?

Uns galhos de umas árvores não são problemas tão urgentes como gerir uma cidade, um concelho, uma região, com um orçamento limitado. Uns galhos de umas árvores podem esperar... O que são umas três ou quatro árvores quando o importante é a floresta? O todo?

Erro. Os galhos de umas árvores, os buracos nas estradas, os muros que ameaçam ruir, o mato seco que pode incendiar num instante, são pequenas coisas que compõem o todo. A tal floresta que muitos preferem olhar, deixando escapar os pormenores.

Vão surgir os relatórios. As acusações. Vão aparecer os técnicos, os especialistas em árvores centenárias, outros em árvores milenares e até vão aparecer os entendidos em fumos de velas que fragilizam troncos.

Preparem-se para as discussões, muitas delas estéreis.

Ouvi algures que é cedo para apurar responsabilidades e é sempre a mesma coisa em todas as tragédias. Apetece perguntar: é cedo porquê?

Será que não foi demasiado cedo para aqueles que morreram?

São os problemas que se resumem a pilhas de papéis que representam as reclamações das pessoas. Não há um prazo, uma data, uma bola de cristal para adivinhar quando vai acontecer. O certo é que pode acontecer e perante a mais ligeira possibilidade do “pode acontecer” há que agir. Decidir. Fazer. Executar. A isto chama-se precaução, prudência, ter a capacidade de antecipar os problemas.

«Prepara-te para o pior que pode acontecer. Se o fizeres, terás vantagem sobre os outros. Verás mais longe. Os teus sentidos estarão em alerta». Este ensinamento foi-me passado por um guerreiro, um lutador que nunca conduzia junto à berma da estrada, com receio que ali estivesse um animal ferido, abandonado, errante.

Revolta. Vidas que se perderam demasiado cedo em tragédias evitáveis.

A reclamação. Os alertas. O medo. Os pedidos de socorro. Se se empenhassem mais em cuidar do que temos e em resolver os assuntos que muitos chamam de corriqueiros, talvez não perderíamos tempo, nem vidas.

Não se esforcem tanto em prometer o paraíso. Empreguem todas as vossas forças em cuidar do mundo real porque é aqui que vivemos. É aqui que acontecem ou podem acontecer os problemas que precisam de ser resolvidos. Antecipados.

«Prepara-te para o pior que pode acontecer» ...

Não há assuntos corriqueiros. Não há pilhas de papéis que podem esperar.

É tempo de chorar os mortos sem ter grande fé nos vivos. Naqueles que decidem o que é ou não importante. Naqueles que escolhem qual é a pilha de papéis prioritária e qual é a que pode esperar.

Não culpem Deus. Ele não tem pilhas de papéis.