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Ponto a ponto

Vendo a Madeira de fora, sente-se que há qualidade, mas falta por vezes a coragem para a elevação

Certos pontos toleram-se. Outros, nem por isso.

Na passada sexta-feira, o Governo Regional recusou-se a dar a tolerância de ponto. A vinda do Papa não justificaria a falta, porque, segundo o Presidente do Governo, a decisão só faria sentido se os Madeirenses se deslocassem efectivamente a Fátima, o que não aconteceria por causa da insularidade.

Esta enorme ousadia – a constatação de um facto – fez-se naturalmente cobrar. As Autarquias governadas pela oposição deram tolerância. E a liderança do CDS anunciou, numa metáfora de impecável oportunidade e apuro estilístico, que “o Governo Regional meteu o princípio da continuidade territorial num caixão e enterrou”. Por pouco o Oceano Atlântico não lavou daqui as mãos.

Concorde-se ou não com a tolerância de ponto noutros lados – e eu nem sempre, posto que a satisfação dos crentes está à distância de um dia de férias –, é evidente que, na Madeira, ela seria muito marginalmente utilizada para uma visita a Fátima. Seria tão criticável como foi a tolerância nas embaixadas e consulados. Seria, como é quase sempre, uma licença para sarilhar, popular na medida em que é lamentável.

Sobretudo lamentável, neste caso, pelo tratamento que lhe deram os partidos. Os de esquerda, por usarem uma fé a que ideologicamente se opõem para ganhar votos. Os de direita, por usarem uma fé que ideologicamente os motiva (e intimamente possuem) como haste de uma falsa bandeira de continuidade territorial – o que, por algum motivo, me parece pior.

Nada disto tem que ver com continuidade territorial. Tem, muito, que ver com descontinuidade memorial. A oposição na Madeira criticou, sempre, a política no adro da Igreja, e a cumplicidade entre Governo Regional e a Igreja Católica, como se tudo fosse muito evitável numa ilha como a nossa. E censurou a leniência do poder para com funcionários públicos, o clima gratuito de festa que acalentava fidelidades e amnistiava o poder.

Ao recusar a tolerância de ponto, o Governo praticou a renovação anunciada. Marcou uma pequena diferença quanto ao passado, e deixou um sinal de realismo, exigência e trabalho. Ficava bem à oposição reconhecê-lo.

Mas o poder, alcançado, desejado ou prometido, desencaminha as consciências e derrota a lógica mais elementar.

É um pequeno ponto. O pior é que há outros como ele.

A pré-campanha das autárquicas faz-se destes simulacros de indignações e causas. Polémicas de rede social, de fotografia indiscreta, de blogue e carta anónima, sem grande coerência de tema ou propósito. O buraco na rua, a licença de construção, os meios aéreos de combate a incêndios, as presenças terrestres no combate a incêndios, as visitas oficiais da República, as festas da cidade, os festivais de verão, por tudo se disputa a razão, a paternidade e o momento fotográfico. É um tempo novo, talvez. Um tempo de de descontrolo do meio e, por isso, da mensagem.

Vendo a Madeira de fora, sente-se que há qualidade, mas falta por vezes a coragem para a elevação. Elevação, aqui, seria lembrar que um dos significados da palavra “virtual” é “falso”. E que a popularidade virtual é, por vezes, uma falsa popularidade – uma falsa força, e uma falsa ameaça.

Certos pontos toleram-se. O que não se tolera é uma política de pontos, metafórica e literalmente reticente, refém e instrumental de percepções virtuais, extirpada do contacto directo que aproxima o poder da preocupação efectiva do cidadão. A política dos pontos é a política do presente. Mas quem joga para ganhar tem de inspirar confiança numa alternativa credível e íntegra de futuro. Esse é, afinal, um dos (verdadeiros) sentidos da palavra fé. E a Madeira precisa dela.