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Ó Laurindinha

Quem não conhece a célebre canção popular “Ó Laurindinha”? Que se estende nos versos “...vem à janela. Ver o teu amor, que ele vai p’ra a guerra”. Uma canção cuja origem se perde no tempo, mas que muito jeito fez ao ‘Estado Novo’ de Oliveira Salazar quando quis, com ternura e suavidade, mobilizar a sociedade portuguesa para a guerra no ultramar. “Se ele vai p’ra guerra, deixá-lo ir. Ele é rapaz novo, ele torna a vir”. A canção é uma arma, que qualquer um de nós pode usar, mas que também pode ser usada contra nós. Quando se quer afagar e aquietar todo um povo, escondendo medos e inquietações que possam atrapalhar desígnios de alguns, são muitas vezes estas as armas escolhidas. “Ele torna a vir, se Deus quiser. Ainda vem a tempo de arranjar mulher”. E assim a guerra entra nos nossos corações como algo romântico que não tem necessariamente que interferir no caminho que queremos fazer para a nossa vida. Mas interfere, mutila, interrompe, trucida, mata, mesmo a daqueles que não chegam a pôr os pés na guerra. E hoje continuamos a trautear a ‘Laurindinha’, inocentemente. Eu faço-o, e a minha filha de 3 anos também já me imita. Um dia destes, depois da canção, perguntou-me ‘o que é a guerra’. E eu expliquei-lhe... mas a arma da canção é mais forte do que qualquer explicação e, como se vê, atravessa gerações.

As letras das canções revelam muito do sentir e viver de uma sociedade num dado momento, e o seu sucesso ajuda a perpetuar e enraizar determinadas atitudes ao longo de gerações. Algumas destas letras, inclusive de músicas infantis, chocam de tal forma as sociedades atuais, com as suas mensagens de violência e descriminação, que estão a ser reescritas em versões politicamente corretas. Por exemplo, a letra original da canção “Sebastião come tudo”, escrita por Oliveira Santos em 1943, tem um verso onde a violência doméstica surge como algo banalizado no quotidiano: “Sebastião fica todo barrigudo e depois dá pancada na mulher”. Apesar das novas versões, onde os beijinhos substituem a pancada ou a porrada, ainda algumas gerações mais velhas, já como avós, se distraem e repescam a versão antiga. À conta disso, depois de uma temporada de convivência próxima com os avós, a minha filha já cantava a versão da porrada. Outro exemplo que ilustra a mesma situação é a letra original da canção popular “O mar enrola na areia”: “Também o mar é casado; Também o mar tem mulher; É casado com a areia; Bate nela quando quer”. E, claro, todos se recordarão da música “Atirei o pau ao gato”, comportamento que configura maus tratos aos animais e que hoje, à luz da legislação portuguesa, já é crime. As versões atualizadas substituem o ‘pau’ por ‘pão’ ou ‘peixe’ e o verso “Mas o gato não morreu” por “Mas o gato não comeu”.

Há quem não concorde com a reescrita das letras para as adaptar às exigências sociais atuais, não lhes atribuindo qualquer influência nas crianças. No entanto, mesmo que assim fosse, seria sempre estranho querer dar uma determinada educação aos nossos filhos cantando-lhes uma versão socialmente condenável e incorreta da vida, além de incoerente com o nosso próprio exemplo. Ainda assim, esse sim, o nosso próprio exemplo, será sempre o mais determinante na evolução positiva da sociedade. Não é por acaso que, apesar da popularidade das canções exemplificadas acima, e embora ainda tenhamos muita violência doméstica e maus tratos aos animais, a sociedade já conseguiu evoluir ao ponto de social e legalmente condenar atitudes que, até há bem pouco tempo, chegavam a ser incentivadas.