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Era uma vez um rei

Apesar de, em 2016, a Academia Sueca ter atribuído o Nobel da Literatura a um músico, Bob Dylan, pelo seu importante contributo na poesia cantada, as letras das canções continuam, hoje, obscurecidas pela força da melodia. No entanto, para quem consegue perscrutar, por entre as notas musicais, a mensagem da canção, está reservado um extraordinário mundo de ideias, sentimentos, sensações e experiências que ajudam a compreender melhor o mundo em que vivemos. Mas absorver as várias camadas que compõem uma canção não se resume à capacidade de, enquanto a melodia nos embala, prestar atenção à letra. O próprio significado da palavra possui vários níveis por ‘descascar’ e quanto mais fundo conseguirmos ir mais para extrair e absorver teremos.

Se atendermos, em particular, à música infantil, é comum encontrarmos não só a mensagem para as crianças, mas também uma outra, menos óbvia, para um público com mais idade. Não é comum, agora como adultos, ouvirmos música infantil por interesse próprio, mas quem está rodeado por crianças vê-se, inevitavelmente, sujeito à apreciação desde género. José Barata Moura, para além do ‘Joana come a papa’ ou ‘Olha a bola Manel’ escreveu ‘Era uma vez um rei’ que possui uma mensagem para a qual todos os líderes, desde políticos a empresários de sucesso, até ao pároco da freguesia ou ao chefe de uma qualquer repartição pública, deveriam prestar atenção. O refrão caracteriza uma forma de estar, de ser ou de fazer: “Era uma vez um rei; Com uma grande barriguinha; Comia, comia; E mais fome tinha”. Outras duas quadras refletem o modo como, à sua volta, essa forma de estar, de ser ou de fazer, é incentivada: “Bom dia, Sr. Rei; Vossa Majestade é o maior; Um rei deve ser grande; Se for gordo ainda é melhor; –Isto dizia o cozinheiro; Olhando o rei de alto a baixo; O rei que coma, que coma; Quero lá perder o tacho”. E mais: “Bom dia, senhor rei; Faz Vossa Alteza muito bem; Os reis são feitos para comer; Para beber e dormir também; –Isto dizia o conselheiro; Esfregando as mãos de contente; O rei que coma, que coma; Enquanto eu sou o Regente”.

A tendência é para, à volta de qualquer líder, nascer uma bolha de interesses que tudo fazem para filtrar ou deturpar a sua visão e, com isso, condicioná-lo a caminhos que melhor servem esses mais próximos. Muitas vezes essa bolha de bajuladores e interesseiros desviam tanto o caminho do líder que acabam por conduzi-lo à desgraça e à perda do poder, outras vezes vão protegendo-o desse destino fatal, pelo menos a médio prazo, e o prejudicado mais imediato é o bem comum da sociedade.

Mas, como recorda José Barata Moura em ‘Era uma vez um rei’, de entre os mais próximos também existe quem, de alguma forma, tente (muitas vezes sem sucesso) que o líder siga o melhor caminho: “Bom dia, Sr. rei!; Como passa vossa alteza?!...; Se continua a comer tanto; Vai rebentar com certeza; –Isto dizia o bobo; No meio de uma palhaçada; Mas o rei continuava; Como se não fosse nada”. Ou então: “Bom dia, Sr. Rei; Viva vossa Majestade!; Depois de tanto comer; Como é que ainda tem vontade?; –Isto dizia a Rainha; Meia triste, meia zangada; Mas o rei continuava; Como se não fosse nada”.