Crónicas

Bom ano

A lista é pessoal e intransmissível, é assim como os bilhetes de avião e os passes do autocarro e inclui tardes com o meu pai a falar de ninharias que só a nós entusiasmam, de quando eu era pequena ou do tempo em que a minha mãe estava viva

Este é aquele momento que nos dá para a pensar. É a última semana do ano, não há como não ficar a matutar no futuro, acontece a todos. Não sei se é para ter 12 desejos à mão quando der a meia-noite e for altura de comer as passas, seja qual for o motivo há, por esse mundo fora, ziliões de planos para o ano novo. Perder peso, comprar um carro, ter aulas de esgrima, fazer uma prova de águas abertas, gastar menos em tralhas, escrever um livro e ficar rica. A lista é a minha, mas cada um, cada cabeça terá ideias próprias sobre o que é preciso para ser feliz.

A lista é pessoal e intransmissível, é assim como os bilhetes de avião e os passes do autocarro e inclui tardes com o meu pai a falar de ninharias que só a nós entusiasmam, de quando eu era pequena ou do tempo em que a minha mãe estava viva. Também está lá, nestes desejos de ano novo, as conversas no sofá com a minha tia Conceição a perguntar se sou irmã ou sobrinha ou pela outra gente, a gente com quem viveu na casa onde ainda mora, da qual se orgulha como se fosse um palácio.

Quando for o momento de pedir os desejos, não me vou esquecer do trabalho, nem do fôlego para levar a vida de sempre, mesmo que, às vezes, me pareça absurda. Se continuar mais ou menos na mesma, terei então vagar para aqueles planos mais extravagantes, para as aulas de esgrima e para voltar a ser a miúda que brincava aos filmes de capa e espada no terreiro, em lutas de cabo de vassoura contra o meu irmão, temido e ágil espadachim. E talvez me possa lançar ao mar para nadar do cais à Barreirinha e cumprir uma ideia antiga, do tempo em que era gordinha e tinha vergonha de tudo, até de mim mesma.

O mais difícil será mesmo escrever um livro e ficar rica. Ficar rica depende da sorte, não vejo maneira se não for no Euromilhões e escrever não se fica pela vontade, precisa de uma história e de arte para a contar. E não se faz se não se arriscar o melhor de nós e o entregar aos outros. Um livro exige tanto de talento como de coragem pelo que talvez seja mais seguro lançar-me ao mar para uma prova de águas abertas. Ou então ficar-me pela esgrima ou empenhar-me em gastar menos no que, de facto, não preciso.

A vida decidirá. Talvez nenhum dos projectos vingue, o futuro pode levar-me a outro ponto, mostrar outras possibilidades ou virar tudo ao contrário. E estes planos comezinhos e simples desaparecem. Todos os dias isso acontece, há infinitas possibilidades de ser feliz ou de cair a pique, não se pode dizer que se está a salvo de um destino mau. Posso ter sorte ou sofrer um revés, cabe-me lutar, resistir, fazer o possível. Eu gosto de acreditar na sorte, no lado bom, nas segundas, terceiras ou quartas oportunidades.

Seja o ano novo generoso.