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Amigos reprováveis

algumas regras tradicionais de pudor, reserva e etiqueta não se inventaram por acaso, e são a expressão privada de princípios constitucionais tão elevados como a independência, o pluralismo, e a separação de poderes

Na última semana, a revista do Expresso chamou à capa uma história que só se podia ter passado em Portugal, e só podia ter sido contada em Portugal.

Para início de conversa, fica-se a saber que o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, e o Primeiro-Ministro partilharam, com as mulheres, uma paella no Solar dos Presuntos,. O Expresso explica esta singularidade com a “cumplicidade e amizade improváveis” entre o Senhor Presidente da República e o Senhor Presidente da Assembleia da República.

É dela, da amizade, que trata afinal esta peça jornalística. O ambiente é lasso, relaxado, informal. À mesa de uma Portugália à beira-Tejo, traídas apenas pelo fato, as duas figuras mais altas do Estado relatam a sua história comum entre sorvos de cerveja e bocados de bife com ovo a cavalo.

Como outras afeições menos públicas, a relação entre Marcelo e Ferro começou por ser de ‘conhecidos’, aquilo que os ingleses - com as distâncias parvas que eles por lá cultivam - chamam uma ‘acquaintance’.

A notícia, felizmente, despacha rapidamente a relativa indiferença desses primeiros 40 anos de vida pública de Marcelo e de Ferro - a Universidade, a Revolução, as estreias políticas, as descidas e ascensões, os debates e altercações - e reserva o grosso da prosa para o ‘bromance’ que a Geringonça finalmente proporcionou.

Hoje, sabe-se, o Presidente da República vai à bola com o Presidente da Assembleia da República. Literalmente. ‘No Euro, Marcelo e Ferro, que adoram futebol, tinham presença protocolar em representação do país e tiveram de se articular’. Segundo Marcelo, ‘isso deu uma aproximação muito grande, vivemos momentos muito intensos e muito emotivos’. E porque a intimidade é, afinal, o cerne da acção jornalística, descobre-se também que Marcelo, católico fervoroso, aplaude o “ateu tolerante” em Ferro Rodrigues, “ao contrário do Primeiro-Ministro, que é agnóstico”, e que foi com Marcelo que o tolerante Ferro participou, pela primeira vez, uma procissão.

Como noutros ritos religiosos, não tardou até que os dois governantes se vissem unidos pela doença.

Quando o Presidente da República foi operado a uma hérnia, Ferro visitou-o no Hospital. E quando o Presidente da Assembleia da República teve “qualquer coisa num pulmão”, Marcelo visitou-o durante toda a convalescença, chegando, qual Patch Adams, “a conduzi-lo de cadeira de rodas pelo Hospital”, e a evadir-se à segurança para lhe comprar e levar caixas de gelado.

Recuperada, a dupla regressou em Março de 2019 ao Solar dos Presuntos - entretanto erigido a uma espécie de mini-Conselho de Estado -, onde festejou, com o Primeiro-Ministro, “o desfecho feliz do ano difícil”.

O relato vem, claro, pontuado com apreciações políticas menores, sempre entremeadas de juras de seriedade, afirmação de diferenças e separação de águas. A afinidade não tem, já se vê, consequências na condução dos assuntos do Estado.

Mantendo as distâncias a que a função obriga, o Presidente da Assembleia vaticina que ‘o eleitorado do PS apoia maciçamente o Presidente Marcelo’, pelo que ‘o mais natural é o PS não apresentar um candidato presidencial’.

Já Marcelo, sublinhando que ‘o PR não pode dizer em público o que pensa nessa matéria’, e ´sem querer antecipar os resultados das legislativas’, diz em público o que pensa na matéria e antecipa os resultados nas legislativas, torcendo para que Ferro continue Presidente da Assembleia da República.

A inofensividade destes sentimentos é finalmente consolidada com uma ou outra apreciação, da responsabilidade dos jornalistas, da amizade enquanto “óleo do canal entre os três órgãos de soberania”, e de Marcelo ser “mais guloso do que Ferro” por ter comido leite-creme.

Este inqualificável enredo prova dois pontos.

Por um lado, que existe uma geração de políticos que, consciente ou inconscientemente, benévola ou malevolamente, por direito natural ou por legitimidade revolucionária, sente que o poder lhe pertence, e que a democracia é uma encenação para um jogo que crêem disputar-se, sobretudo, nas mesas das suas cliques e nos bastidores do seu privilégio.

Por outro lado, que algumas regras tradicionais de pudor, reserva e etiqueta não se inventaram por acaso, e são a expressão privada de princípios constitucionais tão elevados como a independência, o pluralismo, e a separação de poderes.

É sintomático que o Expresso declare, em jeito de censura, que estes jantares não são “coisa pouca”, e que seria impossível imaginar o ex-Presidente Cavaco Silva, Assunção Cristas e José Sócrates a jantar “fora de compromissos oficiais”.

Sucede que essa impossibilidade não deriva de falhas de carácter e de carisma, mas de um imperativo ético e político que também não é coisa pouca, que se recomenda, e que ao jornalismo sério conviria na verdade recordar.

O PR e o PAR julgam, talvez, com isto prestar um serviço à estabilidade política, ao apaziguamento de facções, ou à boa fama do “sentir” nacional.

Só que o “porreirismo” e a candura portuguesas não são virtudes, e decerto não as são em todo o lado. Em órgãos eleitos, estas expressões de parcialidade pública são sinais seguros e vincados de incivilização e de atraso.

Incivilização e atraso branqueados, decretados e promulgados em guardanapos da Portugália Rio, publicados nos locais de estilo.

A repetir, portanto. Como a cerveja, os bifes, os amigos, os dias bonitos. Como a despreocupação alegre e desatenta que é o luxo residual da nossa pobreza, e o salvo conduto da nossa geringonça.

Numa coisa esta reportagem acertou. É verdade que, em Portugal, só a amizade importa. Mas é porque o resto dói.