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Crónicas

A canção que se repete

O sol batia em cheio no quintal onde a minha mãe estendia a lã das almofadas e limpava o pó às tábuas das camas e era só mais um sábado em que aproveitava o calor para tirar o mofo à casa. Atrás, no terraço, havia lençóis estendidos e outra roupa a balouçar ao vento. Ao longe, de uma telefonia da vizinhança, um cantor brasileiro muito popular nos discos pedidos ameaçava a namorada com um “se te agarro com outro te mato, te mando algumas flores e depois me escapo”. A canção rodava tantas vezes na rádio que não havia quem não soubesse o refrão.

Os miúdos cantavam, havia quem pedisse para passar na rádio nos programas de discos pedidos e ninguém se escandalizava com a violência da letra. Os anos 70 iam a mais de meio e, ali no Laranjal como em todos os outros lados, havia escassez de leite, inflação, poucos trabalhos bons e, todos os anos, a escola ou começava tarde ou entrava água pelo telhado nos meses de chuva. E também não faltavam histórias, daquelas em que não se devia meter a colher: as vidas difíceis das mulheres e dos filhos dos homens violentos.

Os dias dessas mulheres e dessas crianças eram duros, viviam com medo e suspensos do bom ou do mau humor do pai, que batia quando bebia, quando não gostava do jantar, quando as filhas cortavam o cabelo ou por outro motivo qualquer. E, embora a revolução tivesse mudado quase tudo, o poder dos homens continuava a ser dos homens, eram eles que ganhavam dinheiro e o futuro das mulheres dependia do acerto no casamento. Depois de casadas não havia maneira de mudar o destino e o divórcio era uma coisa das pessoas da cidade. Lá por cima o objectivo era aguentar, esperar que passasse e sobreviver.

A ideia, que tinha raízes profundas no espírito das pessoas, era a de que cada um tinha a obrigação de carregar a cruz que lhe coubera. Se o marido fosse um homem decente, a vida também seria; se fosse violento era má sorte, mas pouco se podia fazer contra o que não era ainda crime sequer. As mulheres, com filhos pequenos e sem emprego, não tinham linhas de fuga, nem um plano B. E, nas histórias que se contavam, não havia romance, ciúmes, excesso de amor ou as explicações que, entretanto, se criaram para narrativa da violência dentro de casa.

Lá por cima, num lugar onde as pessoas não eram sofisticadas, havia mulheres que apanhavam e homens que batiam, era apenas isto e era uma desgraça quando acontecia. Não me lembro de ouvir alguém dizer que era normal ou aceitável, nem as minhas tias nas conversas à roda do bordado, o meu pai, o meu tio Humberto e todos os adultos com quem cresci. Antes pelo contrário, era uma mancha no carácter, mas era também um problema sobre o qual pouco se podia fazer, sobre o qual se falava pouco. E ainda assim, nos programas de discos pedidos, havia sempre o cantor brasileiro com a canção a ameaçar a namorada com um “se te agarro com outro te mato, te mando algumas flores e depois me escapo”.

O refrão que os miúdos cantavam sem saber o horror que encerrava e que não escandalizava, a rádio passava à tarde quando as minhas tias se sentavam a bordar e aos sábados, quando a minha mãe limpava a casa e a música chegava ao quintal. Os ecos dessa canção atravessaram gerações e continuam a provocar vítimas e sofrimento num ciclo indigno que parece não quebrar, que se repete, uma mulher a seguir a outra, uma criança a seguir a outra.