Será que um nadador é obrigado a arriscar a vida para salvar alguém em perigo?
Na tarde da passada terça-feira, um cidadão estrangeiro, com cerca de 50 anos, morreu no mar na Praia Formosa. O homem entrou na água quando estava içada a bandeira vermelha, devido à agitação marítima. Quando ficou em dificuldades, foi pedida a intervenção dos nadadores-salvadores da empresa municipal ‘Frente Mar’, mas a primeira pessoa a se lançar à água até foi um jovem popular. Quem acabou por alcançar a vítima foram os nadadores-salvadores e um elemento militar do projecto ‘SeaWatch’, que a recolheram para uma embarcação da Estação Salva-vidas do Funchal do ISN e iniciaram as manobras de reanimação. Infelizmente, acabaria por falecer.
Alguns comentários nas redes sociais colocaram em causa este procedimento de socorro. Apontaram para uma hipotética demora e para a falta de ousadia na actuação dos nadadores-salvadores. “Quando alguém se afoga, os ‘profissionais’ ficam a olhar para o mar como se fosse um espetáculo (…). Mais rápidos são a soprar o apito e mandar baixar a música do que a mexer um dedo para salvar uma vida (…). Se não querem arriscar, para quê usar a t-shirt de ‘salvador’?”, questionou um cidadão no Facebook. Será que esta crítica é ajustada?
A Praia Formosa é uma praia vigiada mas não em toda a sua extensão. De facto, há duas zonas vigiadas, com nadadores-salvadores providenciados pela empresa ‘Frente Mar’. Um posto de vigilância encontra-se na extremidade oeste da praia (junto aos balneários, ao parque de estacionamento e a um restaurante) e outro na ponta leste (junto ao hotel Pestana). Os limites destas zonas estão devidamente sinalizados. O incidente de terça-feira aconteceu frente à rampa das antigas instalações da Shell, precisamente uma zona não vigiada (fica a 700/800 metros de distância dos dois postos de vigilância) e quando na Praia Formosa estava hasteada a bandeira vermelha.
Apesar desta situação de perigo ter acontecido numa área não vigiada, assim que foram alertados para a mesma, dois nadadores-salvadores da ‘Frente Mar’ dirigiram-se para o local e lançaram-se à água. “Foram eles [nadadores-salvadores] que fizeram a recuperação do corpo, tendo sido recolhidos pela embarcação do ISN, porque era muito difícil sair por terra, porque havia muita agitação”, descreveu a administradora da ‘Frente Mar’, Marília Andrade. A mesma responsável explica que o popular que se lançou primeiro à água, para tentar salvar a vítima, protagonizou um acto voluntarioso, mas que terá sido “um pouco imprudente”, já que poderia ter consequências trágicas. Isto porque entrou na água com a bandeira vermelha, sem possuir o conhecimento necessário para prestar o socorro e sem um meio complementar de flutuação. “Qualquer pessoa que se aproxime de uma vítima de afogamento que esteja consciente, a primeira reacção instintiva da vítima é sobrepor-se a quem a vai salvar. Ou seja, vai empurrar aquela pessoa para o fundo, para tentar manter-se à tona de água. É por isso que o nadador-salvador nunca se aproxima de uma vítima consciente. Fica sempre a 2/3 metros, a distância necessária para lhe lançar uma bóia, um torpedo ou um cinto de salvamento para a vítima se agarrar”, explica a administradora, que já fez o curso de nadador-salvador por duas vezes.
Quanto à suposta falta de arrojo dos nadadores-salvadores, a porta-voz da empresa municipal esclarece que aqueles profissionais não são obrigados a colocar a sua vida em perigo: “Nenhum bombeiro, polícia ou nadador-salvador deve arriscar fazer um salvamento numa situação em que as condições de segurança não estão asseguradas e não permitem que a pessoa que vai salvar possa sair com segurança. Quem salva também tem que se assegurar que a sua própria vida está garantida. A primeira regra na avaliação de uma situação de risco são as condições de segurança. Em qualquer algoritmo de salvamento, a primeira análise que é feita é uma verificação das condições de segurança. No caso do nadador-salvador, tem de verificar se tem condições para entrar na água, se tem possibilidade de sair pelos seus próprios meios ou se é necessário activar algum meio complementar”. Numa análise global, Marília Andrade entende que a actuação dos nadadores-salvadores não merece quaisquer reparos. “Eles agiram da forma que tinham de agir”, garante.
A avaliação do capitão do porto do Funchal, que é a autoridade responsável nesta área, é coincidente com a de Marília Andrade, e vai no sentido de que os nadadores-salvadores de serviço na Praia Formosa agiram da forma que a lei e os manuais determinam. “Fizeram aquilo que está no algoritmo. Avisaram as autoridades competentes, avaliaram se podiam entrar dentro de água e optaram por entrar, porque sentiram que tinham condições. Não são obrigados a fazê-lo se sentirem que vão ficar em risco”, sublinha o capitão-de-mar-e-guerra Bruno Ferreira Teles.
Este oficial superior lembra que a bandeira vermelha estava içada desde as 11h00 de terça-feira na Praia Formosa, o que significa que era proibido entrar na água, devido às condições adversas de mar e ao perigo extremo. “O que eles fizeram - e muito bem - foi alertar as autoridades competentes, porque é a primeira coisa que têm de fazer antes de entrar dentro de água. Eles alertaram a Capitania e a Protecção Civil, o que nos permitiu enviar salvamento imediatamente salvamento diferenciado, neste caso a lancha salva-vidas e os seus tripulantes, que vão ajudá-los se eles se sentirem aflitos dentro de água”, descreve, acrescentando que “se houve um popular que entrou também na água, fê-lo sob seu próprio risco, porque estava bandeira vermelha içada e pôs-se em risco”.
O capitão-de-mar-e-guerra recorda as características algo particulares e algo traiçoeiras da Praia Formosa: “É uma praia de calhau rolado. Se estiver alguma ondulação e a pessoa não avaliar bem como entra na água, pode ser apanhada na ondulação e pode bater com a cabeça no calhau e ficar imediatamente inconsciente. Metaforicamente, eu diria que aquilo é como uma máquina de lavar roupa. Nas piores situações, pode afogar-se”.
Bruno Ferreira Teles refere que na lei do regime jurídico aplicável ao nadador-salvador e no respectivo manual técnico “está muito bem plasmado que, no socorro à vítima, o nadador-salvador nunca deve colocar a sua própria segurança em risco”. “Ele tem que avaliar se tem circunstâncias ambientais para o fazer. Porque se ele se colocar em risco, é uma segunda vítima que está dentro de água”, justifica. “Se formos aos seus deveres gerais e especiais, eles têm de vigiar a forma como decorrem os banhos, auxiliar e advertir os banhistas, socorrê-los em situação de perigo, emergência ou acidente, sem colocar a sua própria vida em risco. Precisamente para mitigar, no algoritmo do salvamento e respostas a emergências, o potenciar uma segunda vítima”, adianta.
A opinião de Paulo Falé, formador de nadadores-salvadores e gerente da ‘Ondas Calmas, Lda.’, empresa com actividade nesta área, vai no mesmo sentido: “O nadador-salvador pode ter a obrigação de fazer um salvamento fora de uma zona vigiada. Tem de o fazer se estiver em causa a vida de um banhista, desde que não esteja em causa a sua própria segurança. Mas isso é uma avaliação subjectiva e técnica do profissional. Ele não tem que colocar a sua vida em risco para um salvamento. Mas pode ser obrigado a fazer um salvamento fora da sua área de intervenção ou nas proximidades, se assim for necessário”.
Face a estas análises de especialistas na área, chega-se à conclusão que os nadadores-salvadores não são obrigados a "arriscar" a sua vida quando as condições de segurança não estão garantidas e que, no caso do incidente na Praia Formosa, seguiram as orientações técnicas e legais.