Cassandra
Numa curta viagem pela Grécia clássica, vamos aqui recordar uma figura da Ilíada. Trata-se de Cassandra, filha dos reis de Tróia, Príamo e Hécuba. Existem outras versões desta figura, mas vamos ficar pela da Ilíada. Cassandra tinha o dom da adivinhação, mas o problema é que anunciava desgraças, que invariavelmente aconteciam. Daí que, segundo as versões, tivesse sido proibida de falar ou que Apolo, zangado, fizesse com que ninguém acreditasse nela.
Uma coisa é certa: Cassandra predisse que se os troianos introduzissem o célebre cavalo de madeira dentro das muralhas da cidade, seria o fim de Tróia; não acreditaram, e o resultado viu-se.
Como muitas outras histórias e mitos, esta passou à sabedoria corrente os povos, e serviu de referência, como a de Édipo.
O interessante é que, vinte e oito séculos passados desde Homero, situações idênticas se vêem repetindo. Os líderes políticos continuam a lavrar no mesmo erro: calar impiedosamente quem anuncia coisas desagradáveis, sem se preocupar com a veracidade ou a simples possibilidades de estarem certas.
E assim grandes decisões são tomadas sem ter em linha de conta a totalidade dos elementos de decisão. Por vezes de forma deliberada: a segunda Guerra do Iraque foi desencadeada com base nos relatórios de informação que apontavam a existência de armas de destruição maciça. Simplesmente, várias versões dos relatórios foram sendo “corrigidos” até acertarem com a decisão já tomada por Bush e Blair; e essas armas nunca apareceram...
Os ditadores são as vítimas (voluntárias) deste processo: ninguém podia contestar as intuições geniais de Hitler, ou dizer que os exércitos que ele orientava só existiam no papel.
A actual Administração americana vem dando mostras desta velha tendência. Já vimos demissão da chefe de estatísticas do Departamento do Trabalho dos EUA, Erika McEntarfer, após um relatório desfavorável sobre os dados de emprego, com Trump acusando-a de manipulação (sem provas). Como a demissão do tenente-general Jeffrey Kruse, chefe dos serviços militares de informação (DIA) depois de os seus serviços terem considerado que os ataques ao Irão realizados em Junho atrasaram em vários anos o programa nuclear de Teerão, ao contrário da sua destruição total, anunciada pelo Presidente. Ou o “folhetim” com Jerome Powel, Presidente da Reserva Federal, sobre as taxas de juro, em que se opõem as razões de Powell às intuições de Trump.
Dir-se-ia que o avanço da Ciência eliminaria a intuição e a adivinhação, dispensando as Cassandras. Mas assim não é.
Tal como a evoluída Alemanha caiu no logro do nazismo (estádio supremo do populismo), os Estados Unidos, cujas instituições inspiraram muitos outros estados, existentes ou em formação, arriscam-se a renegar os seus próprios princípios constitucionais, mergulhando num mundo curiosamente previsto no livro It Can’t Happen Here (Isto não podia acontecer aqui), publicado por Sinclair Lewis em1936, e que devia ser de leitura obrigatória em todos os países, mas principalmente na América.
E assim voltamos ao tempo em que as Cassandras eram impedidas de falar, e os mensageiros arriscavam a vida por transmitir notícias desagradáveis.