Será que um cortejo de “corpos despidos” não é um Carnaval tradicional da Madeira?
As notícias dos diversos cortejos de Carnaval que se realizaram nos últimos dias na Região Autónoma da Madeira foram tema de conversa entre a população, que, como é hábito, faz diversas avaliações sobre a qualidade, a originalidade e a animação do espectáculo proporcionado pelos foliões. O debate também se desenvolve nas redes sociais, sendo que há questões que são recorrentes, como a crítica à escolha de modelos de festejo do Carnaval que supostamente têm pouco a ver com a realidade do nosso arquipélago. Num comentário no Facebook, o cidadão norte-americano James Meyer refere que o ‘Trapalhão’ “é mais como o tradicional desfile de Carnaval da Madeira” e, referindo-se ao cortejo alegórico de sábado à noite, garante que “aquela outra porcaria com corpos despidos de toda a gente pendurada por todo o lado” nada tem a ver com a tradição regional mas antes apenas com o Brasil. Será mesmo assim?
Para responder a esta questão será preciso antes definir o que é uma “tradição”. Na Sociologia, ciência que estuda as relações humanas, as instituições e as estruturas da sociedade, o conceito de "tradição" refere-se à transmissão contínua de costumes, crenças, valores e práticas culturais de uma geração para outra, desempenhando um papel fundamental na formação e manutenção das identidades colectivas e na coesão social. Deve ser considerada dinâmica e não estática.
Na História da Madeira é possível identificar costumes e práticas no período de Carnaval que atravessaram várias gerações. Algumas perduram até aos dias de hoje. Outras perderam-se no tempo. Uma reportagem publicada na Revista do DIÁRIO de 28 de Fevereiro de 2009, da autoria do jornalista Duarte Azevedo, faz uma resenha histórica detalhada deste tema.
Desde os finais do século XIX que se encontram vestígios de que a quadra carnavalesca atingia toda a população, quer nas suas expressões mais populares quer nos exemplos mais recatados. No princípio ganhava expressão sobretudo em manifestações de rua, com os disfarces a traduzirem uma maneira de estar que não passava mais do que uma ‘simples brincadeira’. São do princípio do século XX as imagens de crianças disfarçadas mas apenas ao nível da roupa, sem máscara, apostando-se então em fatos do folclore madeirense ou de diversas profissões (empregada doméstica, padeiro, etc.). Paralelamente, havia grupos com apresentações temáticas. São conhecidas as fotos de um grupo disfarçado de ‘caixas de bonecas’, outros de relógios. Para alguns foliões, o palco cingia-se à rua e para outros os bailes de Carnaval constituíam o ponto alto da festa.
O Carnaval de Rua, porém, ganhou expressão ampla, que a todos mobilizava, sobretudo ma Rua da Carreira. Desenvolvia-se durante a tarde, entre o Largo da Igrejinha e a Rua de S. Francisco. O Carnaval da Rua da Carreira não era mais que uma autêntica batalha de serpentinas, confetis, farinha, açúcar, sal, milho em grão, ovos, tomates e todo o tipo de ‘munições’ que eram lançadas de baixo para cima e de cima para baixo. Os mascarados que passavam por lá eram simultaneamente alvos e atiradores. As autoridades procuraram impor algumas regras. Conforme relatou o historiador Alberto Vieira, em 1910, o governo civil proibiu a tradicional batalha de arremesso de objectos. Em 1948, foi proibido o uso de máscaras e exibição dos travestis.
Por volta da década de 1950, os bailes deixaram a privacidade das casas ou quintas particulares para ganharem maior dimensão com a abertura de grandes salões, a fim de receberem esses convívios, com entrada seleccionada. Ainda assim, eram bailes menos restritos do que os que aconteciam nos casinos ou num restrito número de hotéis em que a ‘festa carnavalesca’ ficava unicamente para estrangeiros.
De participação mais ampla há memória dos bailes no Teatro Municipal Baltazar Dias, organizados pelo vizinho Clube Sports Madeira, antes até daqueles que ficaram famosos no Ateneu Comercial do Funchal. Mas com passagens por outras paragens, como são exemplos o Solar D. Mécia e a Associação Estudantes Pobres (atrás do Jardim Municipal), sem esquecer as sedes das bandas filarmónicas, conhecidas por ‘Guerrilhas’ e ‘Artistas’.
Aos hotéis o Carnaval chegaria depois, com uma excepção: o Hotel Monte Carlo tornou famosas as manifestações aí organizadas por essas alturas. Mesmo antes do Ateneu Comercial do Funchal chamar a si o protagonismo maior. Mas o ‘boom’ hoteleiro nesta época acontece já na década de 1970. São diversos os grupos que se organizam para desfilarem nas diversas unidades hoteleiras (Savoy, Vila Ramos, Girassol, Sheraton, Atlantis, Casino, Inter-Atlas, Dom Pedro Machico) que começam a aderir ao Carnaval, tomando, aos poucos e poucos, o lugar dos salões tradicionais e fez perder o fulgor de carnavais como os do Ateneu.
A Festa dos Compadres, em Santana, merece uma referência específica. É uma tradição com mais de 60 anos. As primeiras manifestações eram diferentes do actual espectáculo para julgamento do compadre e da comadre, acusados muitas vezes de infidelidade e de outros pecados. De acordo com Marcelino Teles, principal responsável deste cartaz, a festa dos ‘compadres’ e das ‘comadres’ alternava semanalmente e de ano para ano, e tinha a sua data na quinta-feira antes do Carnaval. Os compadres tiveram a iniciativa de elaborar um caixão para simular o enterro das comadres, estando todos vestidos de negro. Na semana seguinte, a resposta surgia por parte das mulheres. Arranjavam um compadre sentado numa cadeira, dentro de um carro sem rodas puxado pelas próprias comadres, pretendendo desta forma fazer o seu funeral, igualmente com o seu correspondente fogo de assobio. Estas celebrações ganharam força a partir da década de 1960. O fogo de assobio desempenhava um papel importante para esta festa, que com as suas características e barulho, mostrava e potenciava o elemento de escárnio. Terá sido na década de1970, depois de se enraizar e difundir muito a tradição dos compadres e das comadres, que começaram a juntar-se grupos em Santana, promovendo o desfile, onde eram dadas largas à imaginação dos populares, em que elementos carnavalescos se misturavam com traços etnográficos. Curiosamente, há representações e festejos de ‘compadres’ e ‘comadres’ em várias outras regiões do país. Crê-se mesmo que esta tradição chegou à Madeira vinda dos Açores, por intermédio do jornal ‘O Camponês’, publicação popular no meio rural no início do século passado.
No final da década de 1970, os Jovens Cristãos da Madeira começaram a organizar cortejos de Carnaval. Foi também por essa altura que a Direcção Regional do Turismo passou a promover o desfile ‘Trapalhão’, inspirado no Carnaval da Rua da Carreira. No cortejo que teve lugar a 19 de Fevereiro de 1980, na Avenida Arriaga, participaram aproximadamente 300 mascarados, tendo um júri escolhido os melhores disfarces.
De facto, foi só no início da década de 1980 que passou a haver cortejos organizados pelo Governo Regional, que quis atribuir “um sentido de disciplina” e uma componente de espectáculo que faltava em realizações do género. Era o nascimento de um cartaz turístico. Ribeiro de Andrade era o então director regional e João Carlos Abreu e Manuela Aranha eram responsáveis de animação.
O primeiro cortejo alegórico teve lugar na noite de um domingo, a 17 de Fevereiro de 1980. Na reportagem do evento, o DIÁRIO relatou que “muitos milhares de pessoas encheram por completo a Avenida Arriaga e parte da Avenida Zarco e ainda a Rua Câmara Pestana”. Logo nessa primeira e concorrida edição houve alguns elementos que pareciam importados do Brasil. Houve uma rainha do Carnaval, a cantora portuguesa Gabriela Schaaf, e pelo menos dois dos grupos participantes eram escolas de samba. A ‘Caneca Furada’ era um desses grupos e inspirou-se na ‘Escola da Mangueira’, do Rio de Janeiro.
Tanto o ‘Trapalhão’ como o cortejo alegórico da noite de sábado já existem há mais de quatro décadas na Madeira e atravessam diversas gerações. Independentemente de terem elementos importados de outras regiões ou países, já serão, porventura, os costumes da época carnavalesca há mais tempo enraizados na cultura popular madeirense. Não corresponde, pois, à verdade quando se diz que esta forma de viver o Carnaval “não é de forma alguma a cultura ou tradição da Madeira”.