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Crónicas

A forma como nos comunicamos

Esta semana surgiram imagens gravadas em dois espaços temporais, na mesma discoteca, em Ibiza. Uma no final dos anos 90 e outra do Verão passado ( 2024 ). Na primeira viam-se pessoas a dançar ao ritmo da música, algumas delas suadas pelo calor do ambiente e dos movimentos, a pista completamente lotada de gente que procurava diversão e junto ao bar jovens conversavam enquanto bebiam a sua bebida. Em vários pequenos pedaços era notório o flirt, os olhares e as primeiras palavras trocadas entre gente que não se conhecia mas que procurava descobrir algo de novo e de diferente. Sentia-se a magia da música e da alegria que facilmente transparecia nos rostos dos que naquela época viajavam numa corrente de sensações que o entretenimento noturno entregava de forma única. Do outro lado, a filmagem mais recente, mostrava um enorme Led wall, com imagens impactantes atrás do Dj. À sua frente uma vastidão de público, todos de telemóvel bem ao alto a filmar ou fotografar tudo o que ia acontecendo para mais tarde recordar ou quem sabe para mostrarem a alguém onde tinham estado. Parecia um exército parado perante o seu general ou fiéis virados para Meca.

Todos os dias, se prestarmos um pouco de atenção vemos a forma como tanta gente se refugia atrás deste pequeno objecto multi-funções que até já fala connosco ou nos dá dicas mediante os nosso gostos e preferências. Longe de mim querer com isto criticar os telemóveis ou esconder as suas vantagens que nos ligam ao mundo e aos que mais gostamos de forma especial. Que nos aproxima dos que estão longe e nos dão acesso a todo o tipo de informações numa questão de segundos. Foram aliás estas maravilhas da tecnologia que me fizeram sentir um pouco mais ligado à família e aos amigos quando vivi fora do país. De facto quando bem utilizados ou de forma equilibrada podem-nos facilitar a vida e entregar maior qualidade mas como tudo, em excesso torna-nos dependentes, menos empáticos e suscetíveis de novos e diferentes relacionamentos. Esta semana, estava a jantar com uns amigos num novo restaurante em Lisboa e na mesa ao lado três pessoas iam fotografando os pratos à medida que eles vinham. Rodavam-nos para criarem novas perspectivas e ângulos diferentes e a única altura em que interagiam uns com os outros era para mostrar algo de aparentemente fantástico que tinham descoberto nos seus telemóveis.

Seja num espetáculo de dança, num concerto de música, numa festa ou num qualquer evento, muitas pessoas deixam de viver os momentos para os fotografar ou filmar. O prazer que retiram é o de mostrar aos outros, de criar novos conteúdos para as suas redes sociais, de mostrar a vida aparentemente perfeita que levam, de alimentar frustrações e invejas nos que os seguem. Isso acaba por transformar aqueles momentos perfeitos que vamos colecionando de forma orgânica em algo programado e teatralizado para criar impacto nos outros em vez de nos assoberbar pela genuinidade com que aparecem. Vamos deixando perder a naturalidade, a surpresa, o mistério e a beleza dos contactos informais que se transformam em novas descobertas para desenharmos estratégias que nos levem a cultivar alguma espécie de interesse nos outros, sem nos darmos conta de que enquanto filmamos vamos perdendo a essência do que procuramos e não captamos o essencial. A força e a explosividade do que aparece sem estamos à espera.

Perde-se a energia, vai-se aquele nervoso miudinho do olhar, da troca de palavras, dos gestos, dos afetos e do calor humano. Substitui-se por catálogos de pessoas que vamos escolhendo em aplicações como se só a imagem interessasse. Deixamos de compreender as emoções, de nos deixarmos levar por desejos e de nos comunicarmos da forma mais pura. Isso faz de nós menos humanos, com menor inteligência emocional.

Faz mais tags ao vivo, mais likes ao ouvido, tecla mais com a boca. Vais ver que (ainda) vale a pena.

“Nunca o nosso mundo teve ao seu dispor tanta comunicação. E nunca foi tão dramática a nossa solidão. Nunca houve tanta estrada. E nunca nos visitamos tão pouco…” - Mia Couto