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Crónicas

As palavras difíceis de pronunciar

Aquelas pessoas viviam lá, naquela casa grande, branca e com vista para a cidade, o manicómio masculino, e sofriam de problemas psiquiátricos graves

Quando o mundo novo entrou pela nossa casa adentro, o mais difícil não foi perceber o significado, mas pronunciar palavras complicadas como psicologia e psiquiatria. E isto só para dar exemplos de como se passou a falar de uma maneira diferente, até no Laranjal, lugar onde as pessoas não tinham muitos estudos e estavam habituadas a chamar as coisas pelos nomes de sempre. O meu pai, a minha mãe, as minhas tias e os vizinhos sabiam que, às vezes, a doença atingia a cabeça e fazia estragos profundos.

Todas as semanas os irmãos da casa de saúde São João de Deus levavam os doentes a dar um passeio e, mesmo que se quisesse, era impossível não dar por aqueles homens que desciam pelo caminho que ia dar ao Trapiche. Aquelas pessoas viviam lá, naquela casa grande, branca e com vista para a cidade, o manicómio masculino, e sofriam de problemas psiquiátricos graves. Para a minha mãe e para as minhas tias eram apenas “doentes”, a quem se devia respeito e de quem não se podia rir.

A imagem ficava mesmo depois de terem passado, fazia-se um silêncio estranho na roda do bordado. Não sei bem o motivo, mas as mulheres de meia idade com quem cresci intuíram que a linha era frágil, qualquer um podia perder o juízo. E depois contavam-se tantas histórias, dos rapazes que ficavam assim por estudar e ler muito, as raparigas que enlouqueciam na mudança da idade. Às vezes era por amor, por causa dos casamentos que, nos anos 70, ainda eram contrariados pelas famílias.

As minhas tias vigiavam-me sempre as leituras e os livros, não queriam que fosse demais, que isso podia fazer mal às mulheres, sobretudo na adolescência. Eu não entendia a lógica, mas, no Laranjal, não se ia ao psicólogo quando se atravessava um período mais complicado. As pessoas nem sequer conseguiam pronunciar a palavra e por isso defendiam-se como podiam e do que acreditavam que podia fazer mal. E ler parecia ser um factor de risco, como as invejas e os desgostos de amor.

O mau olhado também não era bom, podia tirar o apetite e a vontade de viver e, por duas vezes, a dona Aldinha, uma senhora que sabia a reza, curou-me com cruzes de alecrim, a arrotar muito o “camadão” de olhado que se tinha abatido sobre mim, tinham-me cobiçado “o meu vestir e o meu andar”. Da primeira vez tinha cinco anos; da segunda foi curada com recurso a uma peça de roupa. A senhora garantia que era a mesma coisa, uma peça de roupa ou em pessoa e a minha mãe fazia o que fosse preciso por mim.

Eu era uma criança feliz, uma gordinha que gostava de comer, sem outro medo além de dormir no escuro e, por isso, cada momento de melancolia ou de pouca fome era razão para correr para o médico, quando falhava havia a dona Aldinha para me livrar dos males imaginários. O mundo novo, que entrou pela nossa casa adentro, teve de conviver por uns tempos com o pensamento mágico do olhado e dos bruxedos, das rezas e das curas com alecrim, esse mundo antigo de onde vinham todos no Laranjal dos anos 70.