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Crónicas

Um dia

E, bem ou mal, havia a casa do Laranjal que, desse por onde desse, estava lá, no alto da curva do caminho, como o plano de fuga para um dia, para todos os azares

No dia em que desci os degraus da entrada com a minha roupa em sacos de viagem ainda havia um muro com heras e a casa estava mais ou menos como a minha mãe a tinha deixado, mas o momento para ser independente era aquele. Para lá da porta do caminho havia outra vida à minha espera. Eu não ia demorar muito até estar casada e o meu pai já tinha decidido que era novo demais para viver sozinho. A minha madrasta mudou-se para a casa do Laranjal no mesmo dia em que carreguei a minha roupa escada abaixo a caminho de um T1 no Til, com vista para a cidade e para o porto.

E a vida meteu-se entre nós, a casa do Laranjal, todas as memórias que me fizeram gente e eu, a Marta de quase 30 anos, que passava mais tempo na redação do que em casa e quase não tinha vagar para apreciar a vista para o porto e para a cidade. As estações sucediam-se umas atrás das outras sem aquela magia de acordar e sentir o cheiro das flores das laranjeiras no quintal. Não havia galinhas, nem cães e, na casa que tinha sido da minha mãe, havia outra mulher, que a arrumou de outra maneira, trouxe as fotografias da família e fez de mim uma visita, uma estranha.

Nesse Natal, uma vez que lá fui, trouxe a escadinha e o Menino Jesus, ainda com o vestido que a minha mãe lhe tinha feito, acho que quis segurar o tempo, a memória e tudo o que me parecia estar a fugir das mãos, que me doía, lá, no fundo. Uma daquelas dores que não passam nunca, com as quais se consegue viver, mas que, às vezes, se fazem notar, do nada, mas eu estava ocupada demais a trabalhar e a planear as férias seguintes para perceber que se pode gostar de uma casa como se gosta de uma pessoa. E que esse era o caso, o meu e o da casa do Laranjal.

Ainda andei por mais duas casas depois daquele T1, arrendadas todas. Não sei bem porque não comprei. Acho que primeiro quis viajar, viver de outra maneira; depois veio a crise, a idade andou e as oportunidades também. E, bem ou mal, havia a casa do Laranjal que, desse por onde desse, estava lá, no alto da curva do caminho, como o plano de fuga para um dia, para todos os azares. O carinho aumentou depois, quando passei os últimos meses de vida do meu pai, lá, a cozinhar e a ver o Preço Certo.

E, sentado no quintal a aproveitar o sol desse Outono de 2020, duas preocupações ocupavam a cabeça daquele homem: o que ia acontecer ao cão - o nosso Tonecas - e à casa depois de morrer, aos seus bens mais preciosos. O trabalho de uma vida não devia ser vendido assim, a um desconhecido, para desmanchar e fazer tudo de novo. No fim, quando se tornou mais difícil suportar o cancro que o consumia, a ideia de eu voltar a viver na casa do Laranjal encheu-o de alegria, de planos, de como seria tudo mais fácil e melhor. Morreu nesse ano, pouco antes do Natal.

A casa não foi vendida e o Tonecas continua a guardar o quintal, é o melhor cão que alguma vez tivemos, mas não é essa a notícia mais importante. As circunstâncias colocaram-me a caminho da casa do Laranjal, desta vez para fazer a viagem ao contrário daquele dia, quando desci os degraus da entrada com a dor de estar a deixar para trás todas as memórias que me fizeram gente. Não sei se, de verdade, senti alguma outra casa como minha, mas isso é irrelevante. O meu pai está morto, a minha mãe está morta, mas eu estou a chegar a casa, tal como na canção.