Será que a maioria dos casos de violência doméstica acaba sem julgamento?
A notícia da suspensão do processo criminal do homem que agrediu a companheira em Machico e que era acusado de dois crimes de violência doméstica, publicada no passado domingo pelo DIÁRIO, surpreendeu muita gente e gerou um debate nacional, à semelhança do que já tinha acontecido em Agosto passado, quando as imagens de vídeo do incidente foram colocadas em circulação nas redes sociais.
Também agora, houve centenas de comentários nas redes sociais sobre o resultado deste caso, que, para já, não vai para julgamento. No meio dessas reacções, houve quem lembrasse que o resultado deste processo não é propriamente incomum nos casos de violência doméstica. “Muitas queixas e processos caem por iniciativa das vítimas. Apenas não são tão mediáticos”, disse Joana Martins no Facebook. “Infelizmente este é o desfecho de muitos casos deste género”, lê-se num comentário na plataforma Reddit. Será mesmo assim?
Antes de mais, há que saber que um inquérito por violência doméstica pode ter três destinos possíveis. Desde logo, pode ser arquivado pelo Ministério Público, por falta de provas. Em segundo lugar, pode ser deduzida acusação, também pelo MP, e seguir para julgamento. Por fim, pode haver lugar à suspensão provisória do processo, o que evita o prosseguimento do processo penal até à fase de julgamento. É nesta última situação que se encontra o caso de Machico.
A suspensão provisória do processo é uma medida pré-sentencial que é aplicada por iniciativa do Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução criminal, verificados, entre outros, os seguintes pressupostos: o crime ser punível com pena de prisão não superior a 5 anos; ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza; ausência de aplicação anterior de suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza; concordância do arguido e da vítima; e o carácter diminuto da culpa.
Conhecidos que são os três destinos possíveis de um inquérito por violência doméstica, qual é, afinal, aquele que é mais frequente? Dados da Procuradoria-Geral da República que constam do Relatório Anual de Segurança Interna mostram que, no ano passado, o Ministério Público concluiu 37.592 inquéritos pelo crime de violência doméstica, dos quais resultaram 5.214 acusações (13,9 por cento), 23.509 arquivamentos (62,5 por cento), 2.033 suspensões provisórias de processos (5,4 por cento) e 6.836 findaram por outros motivos (18,2 por cento).
Em relação à Comarca da Madeira e também no ano passado, outro relatório mostra que o Ministério Público deu por findos 910 inquéritos de violência doméstica, dos quais resultaram 79 acusações (9 por cento), 660 arquivamentos (72 por cento), 24 suspensões provisórias de processos (3 por cento) e 147 foram dados por concluídos por outros motivos (16 por cento).
Esta informação estatística mostra que, tanto a nível nacional como na Madeira, o arquivamento é, de longe, o destino mais frequente dos inquéritos deste tipo de crime.
Porque é que tantas investigações por este crime são arquivadas? Em Fevereiro de 2019, em entrevista ao DIÁRIO, a então coordenadora do MP na Madeira, a procuradora Maria de Lurdes Correia, avançava com a sua explicação: “O grande problema de o crime de violência doméstica não ser levado até julgamento é porque não se consegue recolher prova, porque as vítimas e as eventuais testemunhas se silenciam. Existe o provérbio ‘entre marido e mulher não metes a colher’. Isto está de tal maneira enraizado dentro de nós (…) que as pessoas não querem depor. Nós não podemos levar ninguém para julgamento se não tivermos prova. Esta é que é a realidade. É importante que o crime seja público, porque aí não está dependente só da vítima e qualquer pessoa que tenha conhecimento de uma situação dessas pode e deve denunciá-la à entidade policial ou ao Ministério Público. Mas isso só por si não chega. É preciso depois recolher prova para poder indiciar alguém por aquele tipo de crime”.
Conclui-se, pois, que a larga maioria dos inquéritos de violência doméstica não chega a julgamento e acaba arquivada.