Memórias
Aprendi a dobrar os tecidos que o meu pai vendia a metro. Essa foi a nossa origem. O meu pai seguiu os passos do meu avô e lançou-se, depois, naquela loja de tecidos
Guardo boas memórias do Natal da minha infância. O cheiro da cera que a nossa querida Deolinda colocava em abundância no chão de casa, muitas vezes mesmo por cima das manchas secas de Nestum que lhe passavam despercebidas na limpeza apressada. Aquela cera que nos valia umas quedas numa sala que se alegrava com todos os cheiros do Natal: o aroma puro dos junquilhos, do musgo, do pinheiro e da lenha húmida. O meu pai não largava a loja, aproveitando o especial movimento da altura do Natal. Nós ficávamos em casa com a minha mãe, no calor acolhedor da lareira, a preparar o presépio com aquelas imagens antigas que todos os anos nos surpreendiam quando as retirávamos do velho baú de madeira para as colocar, algumas já acidentadas, no presépio que lhes dava vida, também nas nossas falas criativas, no meio daquele musgo com as ovelhas brancas, sempre com uma pequena nascente e com os velhos tocos que abrigavam José e Maria e o menino Jesus. E todos os anos tínhamos as mesmas dúvidas relativamente à ordem pela qual devíamos colocar os três Reis Magos.
No meio daquela azáfama, eu acabava sempre por discutir com o meu irmão e lá a minha mãe corria para o antigo telefone preto no qual fazia, um a um, rodar os números 9 2 2 1 5 8 para mandar o meu pai executar a sua sentença final, sem recurso, que me era comunicada no decurso do telefonema: “Arnaldo, vem buscar o Brício!”. Nem o Dr. Dias Costa era tão incisivo na leitura das suas Sentenças de turno. E lá vinha o pai cumprir a decisão sumária. Levava-me para a loja na furgoneta bege para cumprir a minha condenação: trabalhos forçados. Cumpria a minha pena. Confesso que, depois, até me entusiasmava. É verdade, só me fez bem. Trabalhei com o meu pai na nossa velha loja, agora fechada e à espera de uma nova vida. Aprendi a dobrar os tecidos que o meu pai vendia a metro. Essa foi a nossa origem. O meu pai seguiu os passos do meu avô e lançou-se, depois, naquela loja de tecidos. Ainda vendi umas coisas: “tafetá”, elástico, colchetes, marcas e botões. Registava a venda naquela velha máquina que rodava a manete lateral. Depois veio o pronto a vestir e lá a loja do pai teve de se ir reinventando. Passou a vender quase tudo. No Natal, até houve quem por lá passasse a perguntar se tinha “bombas”. O meu pai sorria afirmativamente e brincava mostrando o livro preto dos calotes, com aquelas “bombas” pendentes em escudos.
Na noite de 24 para 25 de dezembro íamos para a loja ajudar o pai. O meu irmão também ia. Era uma noite especial para todos. Na Camacha, o comércio permanecia aberto toda a noite. Ajudávamos o meu pai que não tinha empregados. Procurávamos aguentar até onde podíamos. Tínhamos sempre direito a uma folga de algumas horas para ver a festa. Depois regressávamos e dormíamos numa cama simples colocada no chão da sala do primeiro andar da loja, na antiga casa dos meus avós paternos.
No dia seguinte, já dia de Natal, íamos cedo para casa abrir os presentes e, depois, tínhamos a missa. Sabíamos da importância daquele momento para o meu pai que se enchia de orgulho. Depois seguíamos para a casa dos meus avós maternos, no Lombo Barreto, onde a família se reunia ao almoço. Todos passavam uma tarde entretida, muitas vezes a contar algumas aventuras daquela que era a mais longa das noites da Camacha. Nada surpreendia a minha avó que, ao contrário do meu avô, sempre teve uma boa margem de tolerância relativamente aos excessos dos netos mais rebeldes.
Era um tempo bom que passou, mas que guardo na minha memória. E hoje espero que todos possamos construir boas memórias. Espero que todos possamos viver intensamente a simplicidade verdadeira, a essência genuína e toda a dimensão espiritual do nascimento que assinalamos. Feliz Natal!