Concurso para Guardas Florestais acabou em três mortes na Madeira?
A rubrica 'Fact Check' do DIÁRIO desta quarta-feira, 5 de Novembro, analisava a questão sobre se "são só os turistas que se perdem nas serras da Madeira?". O artigo foi motivado por diversas afirmações de leitores que apontam que os desaparecimentos nos percursos florestais estão todos relacionados com estrangeiros de férias na ilha.
São só os turistas que se perdem nas serras da Madeira?
As notícias a dar conta do desaparecimento do turista polaco nas serras da Madeira têm suscitado diversos comentários nas redes sociais. Enquanto muitas pessoas lamentam o sucedido e mostram solidariedade para com a família e amigos que também já estão empenhados nas buscas, outras criticam o facto de Igor Holewiński ter realizado uma caminhada sozinho.
Nos comentários ao artigo publicado ontem, um leitor afirmava com certeza que não são só os turistas que desaparecem, recuperando um alegado caso de um trágico concurso para Guardas Florestais, "em que houve 3 mortos".
No 'Fact Check' de hoje verificamos se a história é verdadeira, com recurso ao arquivo do DIÁRIO de Notícias da Madeira.
Corria o ano de 1997, quando um anúncio publicado na Comunicação Social dava conta do recrutamento de 16 Guardas Florestais. A oferta atraiu o interesse de dezenas de jovens, que formalizaram, na Direcção Regional de Florestas, a sua candidatura.
Foram convocados 67 jovens, entre os 18 e os 24 anos, para a fase seguinte do recrutamento, as provas de aptidão física, que decorreram entre 2 e 3 Outubro, nos Barreiros. Seguiu-se no dia 4, a prova na serra, que teve lugar no Arieiro, o objectivo era percorrer oito quilómetros no menor tempo possível.
A saída do Funchal aconteceu pelas 8 horas, no Edifício 2000, de onde partiu um autocarro em direcção à Central da Fajã da Nogueira para a prova de montanha.
Os relatos recolhidos pelo DIÁRIO naquele ano davam conta que os candidatos receberam escassas indicações sobre a prova, pelo que muitos jovens foram mal preparados para o terreno. Além de não terem qualquer objecto de orientação ou comunicação, alguns candidatos vestiam roupa menos própria para a serra, houve quem fosse de calções, outros de calças de ganga, havendo também alguns a vestir fato de treino. Sabe-se que a recomendação do coordenador do recrutamento, Gonçalo Pereira, era de que os candidatos fizessem o percurso de calções.
A prova arrancou pelas 9h45, com uma duração estimada de entre 3h30 a 4 horas, desde a Central da Fajã da Nogueira, passando pelo Pico Ruivo e até ao Pico do Arieiro, num percurso sinuoso, repleto de zonas de perigo, com vários trechos à beira de precipícios. Com a falta de sinalização, associada à falta de conhecimento do local, não demorou muito para que dezenas de jovens se perdessem pela serra.
Não bastasse a desorientação e o elevado nível de perigosidade, as condições meteorológicas tornaram o percurso ainda mais difícil, para alguns impossível de fazer. Havia chuva, granizo, nevoeiro e vento.
"Estávamos sozinhos, sem qualquer auxilio. Ao mínimo descuido era morte certa", relatava um dos candidatos ao DIÁRIO, dando conta que os jovens foram para o terreno sem água ou mantimentos: "A única coisa que se podia beber era a água da chuva."
A meta, no Pico do Arieiro, começou a ser atingida pelas 16 horas por alguns jovens, mas para trás ficavam dezenas de candidatos. Muitos perdidos, outros feridos e alguns até mesmo sem vida. A situação obrigou a que a organização da prova accionasse os meios de socorro, com dezenas de operacionais no local em busca de encontrar e socorrer os 67 candidatos. Alguns dos próprios elementos da protecção civil tiveram de ser socorridos em situação de hipotermia e hipoglicemia, à semelhança dos recrutas.
A prova que tinha uma duração máxima prevista de 4 horas, levou dias a ser 'concluída', terminando com dezenas de feridos e três mortos, num caso trágico de recrutamento.
Perante o sucedido, o Governo Regional mandou abrir um inquérito para apurar responsabilidades. O director regional de Florestas da altura, Rocha da Silva, defendeu que "a prova não era desconhecida", afirmando que se tratava de um percurso normal que faz parte das provas de selecção de candidatos ao curso de guardas florestais. "É a 4.ª vez que este percurso é feito, envolvendo mais de 600 pessoas e nunca nada disto aconteceu", disse na altura, responsabilizando os candidatos pelo trágico desfecho da prova.
Em 1999, Rocha da Silva, então director Regional de Florestas, foi alvo de um processo disciplinar instaurado pela Secretaria Regional da Agricultura, Florestas e Pescas, que resultou numa multa equivalente a um mês de salário, mais de 600 contos na altura, o equivalente a cerca de 3 mil euros hoje.
O relatório do inquérito apontou Rocha da Silva como responsável disciplinarmente pelo acidente que vitimou três candidatos a guardas florestais em 1997, baseando-se em três acusações principais, nomeadamente ter excedido competências, ao autorizar a realização da prova sem aprovação superior, ter avaliado mal as condições climáticas e físicas em que a prova decorreu e ter negligenciado a supervisão e fiscalização da organização e execução da prova. Rocha da Silva contestou as conclusões, alegando que as decisões operacionais foram tomadas por Gonçalo Pereira, coordenador directo da prova, e que o próprio secretário Regional Bazenga Marques tinha conhecimento e responsabilidade sobre o processo.
Em 2002, Gonçalo Pereira, coordenador da Guarda Florestal na altura do trágico recrutamento, o único arguido do 'Caso Arieiro', foi condenado pelo Tribunal Judicial da Comarca do Funchal a 1 ano e 6 meses de prisão pela prática, em concurso de infracções, do crime de homicídio por negligência. A pena ficou suspensa por 2 anos.