O bom, o mau e o fiscal
Para infortúnio de São Vicente, os próximos 4 anos prometem ser um ajuste de contas com o passado. A governação pelo retrovisor - ruidosa, mas estéril - assenta num pressuposto politicamente preocupante: dispensa pensar o futuro em troca de poder devassar o passado
“O meu dia da liberdade é melhor que o teu.” “O meu 25 é mais importante que o teu.” “As minhas rosas brancas são mais democráticas que os teus cravos vermelhos.” Poderiam ter sido excertos dos vários discursos que ecoaram na Assembleia da República aquando da comemoração do 25 de Novembro. E enquanto cada deputado subia ao púlpito para vergar a História ao capricho da sua conveniência, Ramalho Eanes fez, sem esforço, o verdadeiro resumo da comemoração transformada em guerra de flores: “Acho que exageraram.”
O bom: Miguel Pinto Luz
Mais de dez anos depois da criação do subsídio social de mobilidade, parece chegar ao fim a via sacra burocrática, pejada de papéis e papelinhos, repetidamente percorrida por milhares de madeirenses e açorianos para receberem o reembolso das viagens realizadas. É certo que a criação de uma plataforma eletrónica para processar o reembolso do subsídio de mobilidade não é novidade, até porque resulta das conclusões do grupo de trabalho criado para o efeito. No entanto, a mera concretização de uma medida proposta por um grupo de trabalho - habitual cemitério de propostas relativas às regiões autónomas - ainda por cima dentro do prazo previsto, é, só por si, um milagre digno dos irmãos Wright. Talvez reconhecendo a raridade da concretização, Miguel Pinto Luz, ministro das Infraestruturas, deslocou-se à Madeira para dar a cara pela medida. Enquanto responsável político por essa área, parece-me justo que o tenha feito, mas ao fazê-lo também assume, pessoalmente, os três desafios que faltam resolver. E, ao assumi-los, rompe com a tradição cómoda de prometer sem cumprir. O funcionamento da plataforma, a sua autonomia total em relação aos CTT e, por fim, a transição para a realização de viagens sem necessidade de reembolso. A fasquia é elevada para Pinto Luz, mas o facto de ter vindo à Madeira dar a cara por esses compromissos revela uma coragem política que escasseia.
O mau: Pedro Nuno Santos
Das efemérides que ninguém, no seu perfeito juízo, ousaria celebrar constam, certamente, os dez anos do primeiro governo de António Costa. Não o digo por discordância política com essa linha governativa - embora sobre isso muito haveria a escrever - mas por ter dificuldade em descortinar o que terá tido esse governo de tão especial que mereça comemoração. Visão diferente, e nada surpreendente, tem Pedro Nuno Santos. Em artigo de opinião no Público, o antigo líder do PS, lançou-se numa saloia saraivada de elogios, que só o próprio seria capaz de proclamar sem corar. Numa alucinação política mal disfarçada de auto-elogio, Pedro Nuno elevou o governo da geringonça a uma epopeia da esquerda partidária, a um milagre da gestão pública e descobriu-lhe qualidades capazes de transformar Portugal na terra do leite e do mel. Na verdade, a sinfonia governativa em dó maior, descrita pelo antigo ministro das Infraestruturas e Habitação, é mais sobre o próprio do que sobre a geringonça. Do aconchego de quem saiu da política, mas continua com os dois pés dentro, Pedro Nuno tenta reescrever a história como quem ajeita o palco para o regresso. Talvez por isso, o artigo soe pouco a comemoração e mais a marcação de território partidário. A nostalgia governativa conveniente, ensaiada por Pedro Nuno, diz pouco do passado, mas revela muito da ambição de quem, apesar de ter jurado o contrário, nunca deixou de fazer política.
O fiscal: José Carlos Gonçalves
Entalado na inusitada circunstância de quem muito prometeu mas nunca pensou ganhar, José Carlos Gonçalves, presidente da Câmara Municipal de São Vicente, brindou-nos, esta semana, com a sua primeira grande entrevista em funções. É, provavelmente, o momento mais fácil e, por isso, mais perigoso, do mandato de qualquer presidente de câmara em estreia. Há pouco a justificar e um longo caminho de 4 anos para construir. Esse terreno fértil e por desbravar costuma levar os governantes mais incautos a traçar impressionantes e grandiloquentes promessas. A sua concretização, porém, rapidamente esbarra na realidade impiedosa da governação, que depressa trata de converter propostas épicas em envergonhadas notas de rodapé. Curiosamente, José Carlos Gonçalves poupou-se à tentação do governante faraónico mas entregou-se ao conforto, bem mais grave, de fiscal municipal. Afinal, da dita entrevista apenas avultou um anúncio: uma auditoria à anterior governação. Para infortúnio de São Vicente, os próximos 4 anos prometem ser um ajuste de contas com o passado. A governação pelo retrovisor - ruidosa, mas estéril - assenta num pressuposto politicamente preocupante: dispensa pensar o futuro em troca de poder devassar o passado. A única esperança é que a prometida auditoria siga o destino da célebre providência cautelar para arrestar toda a documentação da Câmara Municipal. Anunciada com pompa e circunstância, ainda antes de tomar posse, mas nunca apresentada, rapidamente esquecida e hoje uma longínqua memória das agruras de ser comandado à distância por André Ventura. Convém lembrar a José Carlos Gonçalves que a última presidente de Câmara que tentou governar ao ritmo das queixas e dos tribunais, acabou à porta do terceiro mandato. Seria ironia a mais se, para além da passagem de ambos pelo PS, a reeleição falhada fosse mais uma coisa a partilhar com Célia Pecegueiro.