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Crónicas

1987

A rádio tocava as canções da banda sonora do Roque Santeiro, a telenovela de sátira social

Quando fomos à loja comprar o tecido já eu tinha na cabeça o modelo do fato com que iria atravessar a cidade, do liceu à Sé, com a capa no braço e destino à missa de finalista e ao meu primeiro baile. Uma saia curta e justa, um blazer oversize e com chumaços, tudo igual ao que tinha visto numa fotografia da Carolina do Mónaco, a princesa que, nesse tempo, ditava modas. A dona Deolinda era costureira para fazer o milagre, o resto haveria de compor com uma camisa e um laço de smoking, mais os sapatos de salto alto da montra da Cloé, a sapataria onde a minha prima Ana era cliente.

A roupa fugia à tradição, mas estávamos em 1987. A rádio tocava as canções da banda sonora do Roque Santeiro, a telenovela de sátira social, e da União Soviética chegavam notícias da Perestroika. E se o comunismo vacilava, se a nebulosa política que assombrara a minha infância e adolescência com a ameaça de uma guerra nuclear estava a mudar, que mal havia em subir a bainha da saia do fato de finalista? O debate resumiu-se às conversas de domingo à tarde, que eu tinha tudo decidido. O fato iria à Sé, ao jantar num restaurante do Lido, ao baile no Casino e ao que fosse preciso depois disso.

E todas as escolhas, ainda que triviais e insignificantes, libertaram uma nova Lina Marta, uma voz que vinha sem hesitações e não recuava. Ao espelho, no quarto das provas da dona Deolinda, a jovem dentro da roupa com o feitio tirado da revista ia lutar por ficar na festa até às quatro da manhã e isso era só o princípio. As minhas tias, a minha mãe, o meu pai, era muita gente para contrariar, para chamar à razão. Eu tinha 16, quase 17 anos, estávamos em 1987, mas nenhum desses argumentos teria resultado no Laranjal sem a cumplicidade do meu irmão.

Nessa festa, combinámos o local e a hora para chegarmos a casa juntos, os dois inteiros e mais ou menos sóbrios. Devo-lhe isso, a memória do meu baile de finalistas, embora seja redutor e injusto. O meu irmão não foi apenas a desculpa para sair, fomos mesmo a companhia um do outro no cinema, no teatro e no café, partilhámos o mesmo gosto pela arte, trocámos livros e ideias sobre política e escrita. No fim da adolescência, nos anos entre o fim do secundário, a faculdade e a tropa, fomos aliados, cúmplices, guardámos segredos e os planos de ambos.

Em casa, funcionava como uma frente; na rua, passámos a ser os manos. E ainda somos os manos para as pessoas que nos conhecem, ainda nos tratamos assim, às vezes. A vida afastou-nos em alguns momentos, aproximou noutras ocasiões, mas no fim continuamos a ser irmãos. O Duarte que foi comigo ao baile; a Marta que trata dos papéis e das coisas complicadas. Não perdemos o gosto por livros e ainda falámos sobre política e arte, mas agora não é à mesa da cozinha, nem em casa das tias, é no lar, quando vamos visitar a tia Conceição.

Quanto ao fato de finalista que mandei fazer na dona Deolinda teve vida além do dia da missa e do baile. A saia e o casaco morreram na faculdade, a camisa foi bordada por causa de uma moda, os sapatos deram para várias festas. O laço desapareceu entre as gavetas da casa do Laranjal, mas, na verdade, desse dia, dessa roupa e da Lina Marta de 16 anos sobram apenas as fotografias.