Quinta-Feira Santa: outra lógica de viver e acreditar

Recordo como em 1967 na Praia Grande, Colares, fui levado a fazer o que me parecia sem lógica. Estava a nadar e a tentar sair para fora da água. Tudo parecia estar certo. Oiço um apito estridente na praia.

E logo um grito. Não nade, mantenha-se ao de cimo! Vai um banheiro buscá-lo. Era para mim. Está em perigo, está num redemoinho. E lá veio o banheiro com bóia presa a uma corda. Não percebi, mas fui-me aguentando. Calmo por ver o salvador a correr tirar-me do perigo. Mas não sabia porquê. Afinal, nadando era mais puxado para o buraco sugador. Numa leitura recente (resumo), li que muitos crentes vivem a crença sem tomar uma decisão consciente das razões da sua fé, ao contrário dos convertidos letrados.

Um outro escritor, convertido duas vezes (Emmanuel Carrère, O Reino), fala mais claro. Antes da conversão, diz, cada descrente tem algo a ouvir de Cristo; e para ele foi: “deixa-te ir, já não és tu quem conduz” e isso foi para ele renunciar e ficar aliviado, “chamado ao abandono”, e era o que ele mais queria. Mas, também, isso lhe dizia a Quem a pessoa se abandona e que a vai conduzir aonde ela não quer ir, como ele aplica a si, a frase de Cristo a Pedro, a seguir à pesca milagrosa: outros te guiarão e levarão para onde não queres ir (Jo.21,18). Os descrentes (ateus, agnósticos) enquanto adiam a sua conversão, como o escritor, não entendem nem aceitam. Talvez por se considerarem sábios eruditos, não suportam estar ao nível dos filhos pequenos que confiam nos seus pais? Os simples, como os Pastorinhos, a Virgem Maria, S. José, e milhões de outros entenderam e aceitaram as razões do Alto mais que as suas. Jesus pede que os seus seguidores se tornem como crianças (e nasçam de novo) para entrar no Reino de Deus. E muitos entram nele, como entram na vida terrena em relação com os pais, sem entenderem tudo. G. K. Chesterton tinha razão com a sua anedota (cito de memória): o filósofo teima meter o céu na cabeça e rebenta; o poeta contenta-se com meter a cabeça do céu e espreitar deliciado para dentro.

Na última Ceia, Jesus desarrumou as categorias de igualdade, tão badaladas na Revolução Francesa já esquecida dos valores cristãos. Jesus, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo (escravo), tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz! (cf. Fil 2:6-11). Não foi apenas diante dos guardas do Sinédrio, do Sumo-Sacerdote, Pilatos e da soldadesca. Na Ceia eucarística, na véspera, deu poderes divinos aos discípulos seus sacerdotes para celebrarem a sua memória mudando o pão no seu Corpo, o vinho no seu Sangue, e invocar o Pai e o Espírito Santo para que todos os participantes do seu Corpo e Sangue vivam unidos num só corpo. Com este poder os sacerdotes atingiram o “cume da dignidade” (Santo Inácio de Antioquia), e fez deles “espantoso milagre” (Santo Efrém da Síria), que até benze Jesus no altar para ser oferecido ao Pai (Santo Afonso). Por isso, também, o pecado dos sacerdotes é sempre maior e faz tanto mal.

No fim da Ceia Jesus confundiu ainda mais a sabedoria humana de tantos mestres. Lava os pés aos discípulos, como se anulasse a sua posição de Mestre e Senhor, mas recusando essa interpretação: “chamais-me Mestre e Senhor e dizeis bem, porque eu o sou”. Vós deveis fazer o mesmo uns aos outros. Porquê? Porque vos dei o exemplo (cf. Jo. 13, 13-15). Fácil de entender? Nem por isso. Pedro também não entendeu. Por mais Pedra papal que Cristo o tenha feito, o seu Senhor não podia ser escravo dele. E os muito racionais têm razões de erudição para explicar a fé? O que eu faço, diz Jesus, tu, Pedro, não entendes agora, mas saberás depois. E Pedro aceitou o que não entendia, fazendo-se pequeno, sem vergonha e sem se conformar com as suas razões, mas abandonando-se a Jesus e à sua palavra para o guiar. Foi conformista ou foi humilde? Não teve vergonha de aceitar um sentido mais alto e sagrado acima do seu entendimento. O Iluminismo treinou uma parte da humanidade para se conformar com os sábios que negam a dignidade dos pequenos, das crianças, dos pobres e doentes. São ignorantes de muito saber. Estar com esta maralha insignificante é vergonhoso; é mais cómodo e incha mais ser conformista com as elites do saber, do dinheiro e do poder. E o mundo lá continua cheio de problemas que esses poderosos não resolvem; gente tão pequena não merece. Razão tem aquela jornalista muçulmana Sonia Mabrouk. “No seu último livro, diz Xavier Patier, suplica à cristandade para não ter vergonha de si mesma. Ela insiste por um regresso ao sagrado, que segundo ela é alternativa à barbárie. Afinal, quanto não terá esta jovem que ser perdoada pelos bem-pensantes de todos os quadrantes” (Cf. Aleteia fr.29.03.23).

Aires Gameiro