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Estranho império dos sentidos (a ser dicionarizado)

Dia esplêndido em que apetece o pessoano não pensar em nada e a “ter um livro para ler e não o fazer”, mas cobra-nos o Tempo (com T maiúsculo, atenção) um posicionamento contra as antinomias...que nos atanazam a alma e nos envelhecem o corpo. Cobra-nos trabalho, a magnanimidade em forma de texto.. Cobra-nos ele a poesia, como o achamento e a perdição. Cobra um beijo com desenfreio e gosto de fruta da época.

Mais um ano de lembrança do músico Bissau-guineense, José Carlos Schwarz, imprescindível artista da nossa África, que fez do épico o seu lírico e que fez da arte a sua artilharia. Sintam-no em “Djiu di Galinha” (Ilha das Galinhas):

(...)

Manera ki piskaduris ta pera mare
asin tanbi ki n ta pera dia di riba
Manera ki labraduris ta txora txuba
asin tanbi ki n ta txora bu falta.

(...)

Mais um ano sem José Carlos Schwarz.

Espelho. A proliferação de rugas e o embranquecimento de cabelos. Os óculos, estes de ver ao longe, aqueles de vasculhar a barba. Um implante dentário, para que o vampiro, por favor, morda pescoços. A libido (em tempo da Inteligência Artificial) esquece-se o requebrado do Kama Sutra e da Shakti Tântrica. Já não se consegue cantar, de cor, “Os Lusíadas”, mas lembra-se de Luís Vaz de Camões isto:

(...)

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda.

(...)

Ora esquecimentos, ora delírios, a inexorável finitude, a degeneração, a cerimónia do adeus. Quando assim, todos os pequenos fatos, os furtivos fautos, as palavras sem causa, nem consequência, por insignificantes que pareçam, tornam-se importantes e, com todos os olhares expostos ao espelho, je suis, sou Palestina, Saara Ocidental, Iémen do Sul; je suis Yanomami no Brasil, Rohingya em Mianmar, preto na Tunísia; je suis mulher no Irão e gay em Ruanda, poeta na Guiné Equatorial...ante a finitude!

O termo pedra lembra-me a Sísifo, ao Mito de Sísifo. Lembra-me também ao romancista Albert Camus e ao poeta Arménio Vieira. Um, convidava-me a entrar nos seus romances; outro, ainda convida-me a tomar uma bica na praceta (por sinal Luís de Camões e não Praceta Dr. Lereno, da Escola Grande, do Café Sofia ou do que mais se queira), de lembranças de poemas, de filmes, de personagens da História e das estórias. Sísifo, o Mito de Sísifo (Praia de Santa Maria da Esperança, Companheiros), para compor a estátua do Conde de Silvenius...em escancarada irreverência de pedra!

“Poemas Eróticos sobre Frades, Freiras e Padres nos Clássicos da Literatura Portuguesa” (editora Guerra e Paz), antologia organizada pelo professor e investigador Victor Correia, com poemas eróticos de uma cinquenta autores portugueses (da Idade Média ao início do século XX). Encantar e decantar alcovas, sacanagens, murmúrios e outros ais, sensações amiúde nobres, que acontecem por todos os lugares, tempos e templos.

De alçada suspirosa, uma musa aspira ilhas, que distam, da Gamboa à Madragoa e ao “valle fermoso de singular arvoredo”, saudade e desejo, por ilhas há que são negras à noite e já são douradas ao sol, quiçá violetas ao desamparinho. Ilha das ilhas há que, deambulações na solidão da tarde, decantam praias na imensidão de caramujos. E se concha rumorosa houver, presente de Iemanjá, “cheyo de funcho até o mar”...

No breviário do amor (ou do amar), atravessar, navegar e seguir rota para outro norte, por desnorte que haja, palavras a mais (e há mais) num estranho império dos sentidos (a ser dicionarizado)...