Crónicas

Democracia

Putin é um ditador pequenino e brutal e encontrou à sua frente um homem de grande dimensão, um verdadeiro estadista. Daqueles que o mundo só vê de muito em muito tempo

1. Disco: Damon Albarn, dos Blur. Lembram-se? Volta à ribalta com os seus Gorillaz e “Cracker Island”. Dispensa muitas palavras. Fica a referência, agora é só fazerem o que costumam fazer quando sai um disco desta banda: ouvir, ouvir, ouvir…

2. Livro: Ana França estava de férias em Trieste, no dia 23 de Fevereiro do ano passado. A 26 chegava a Lviv, Ucrânia. “Ali Está o Taras Shevchenko com um Tiro na Cabeça — Diário da Ucrânia”, é uma sequência de testemunhos recolhidos pela jornalista e que nos ajudam a perceber muito do que se passa naquele país. Recomendável para todos, especialmente aqueles que persistem na idiotice.

3. Pode não fazer sentido falar no futuro da democracia, quando vivemos num modelo em que a não conseguimos cumprir. A democracia, a nossa democracia, de modelo representativo, está longe de ser perfeita. Não só porque não há sistemas democráticos perfeitos, como também porque nunca quisemos que essa perfeição fosse um objectivo. As soluções políticas, aprovadas em sucessivos actos eleitorais, nunca permitiram que o sistema fosse o mais livre, o mais transparente e o mais correcto.

Imaginemos uma linha. De um lado está a democracia representativa. Consiste num órgão representativo, como um parlamento ou um congresso, ou uma casa de uma coisa, ou de outra. As pessoas desse corpo são eleitas de vez em quando, por uma parcela razoável da população. Como cidadãos, votamos em quem queremos que nos represente. E esperamos que nos anos subsequentes, os eleitos, façam o seu trabalho. Ao fim de um tempo definido pela lei, o seu mandato termina e então decidiremos se se mantêm no lugar, ou não.

No outro extremo da linha está a democracia directa. Neste modelo, em vez de escolhermos outra pessoa para nos representar, nós mesmo o fazemos, o tempo todo. Representamo-nos. Não há intermediários. E provavelmente não vamos ter tempo para fazer nada para além de nos debruçar-nos sobre legislação e outros preceitos legais importantes. As duas formas contemporâneas mais populares de democracia directa, na prática, são a democracia deliberativa e a democracia participativa. A primeira está mais focada na discussão/deliberação que leva a uma decisão, enquanto a segunda centra-se na própria decisão. Em comum têm o facto que ambas procuram envolver os cidadãos no processo.

A democracia directa, representativa e participativa, parece uma excelente ideia, mas como tudo, é imperfeita. Ou não fosse o resultado da ambição e da realização humana.

Entre outras coisas, a democracia representativa, embora simples, tem tendência para a estagnação. Torna-se ineficaz, ilegítima e irresponsável, pois cria, progressivamente, uma classe dominante de representantes, que está mais focada em ser reeleita do que em representar, e um conjunto de preceitos legais que representam mais os interesses do corpo legislativo, do que das pessoas para as quais legislam.

Já a democracia directa exige muito, pois pode consumir muito tempo. O resultado é uma baixa participação (como se isso já não fosse um problema para a democracia representativa) ou, no limite, a participação de um determinado grupo que, com o tempo, se torna privilegiado. Se por um lado é uma maneira excelente de procurar de envolver o todo, acaba sempre por perder força e escala. No contexto de um órgão legislativo, a democracia directa também pode ser errática, arriscando saltos repentinos, com base na percepção do sentimento público que chega em cascata, tornando a governança estável e a legislação coesa num enorme desafio.

Nos tempos que vivemos, outro conceito de democracia começa a surgir: a democracia líquida, um sistema cujas origens são um pouco vagas, mas que existe, de uma forma mais ou menos ideológica, há cerca de cem anos. Vemos isso à volta de alguns partidos europeus que se intitulam de Piratas. Não o havendo, imaginemos a existência de “direita e esquerda” na democracia. Esta forma assumiria um certo tipo de centrismo, ficando ali no meio entre a democracia participativa e a directa. Transmite uma mensagem que se centra no “do it yourself” (faz tu mesmo) ou delega noutros. No limite permite-me mesmo escolher alguém que vote por mim e que eu considere capaz de o fazer com mais assertividade do que eu. Não será errado que chamemos a isto: democracia por delegação. Delego nos mais capacitados a minha liberdade de escolha.

Se gosto disto? Nem por isso. Gosto do compromisso, mas vejo-lhe também muitos defeitos. Como podemos permitir com segurança que os indivíduos mudem dinamicamente a sua capacitação de voto, sem colocar em risco a privacidade e a segurança? Colocam-se também obstáculos tecnológicos e humanos a serem superados, o que explica por que as organizações têm muitas dificuldades em implementar o modelo.

Numa escala pequena vejo algum mérito, numa escala maior só consigo descortinar dificuldades.

4. Faz agora um ano que muito poucos, entre os quais não me incluo, conseguiam imaginar a capacidade dos ucranianos de resistir ao invasor russo. Deitava-me todos os dias a contar acordar, no dia seguinte, com Kiyv ocupada e Zelensky preso pelos putinistas.

Numa altura em que a guerra se encontra quase parada, com um ligeiro ascendente russo, um ano é sempre tempo para se fazer balanço.

Menosprezou-se a capacidade ucraniana e exacerbou-se a preparação russa. As forças armadas ex-soviéticas são um exército de muitos, com algum armamento de última geração, disfuncional, mal gerido, pior comandado. Putin, do alto da sua torre do Kremlin, olhava para ocidente e para oriente e via o que os seus olhos queriam ver, e o que os lambe botas queriam que visse. Criou-se na sua cabeça a ideia de um império russófono forte e estável. Imaginou, pelos olhos dos euroasianistas dos Dugin’s que o rodeiam, uma pátria homogénea e funcional que não existe. Sentiu-se salvífico. O desejado. O ungido pelo povo.

Do outro lado menorizou um presidente que fora comediante. Menosprezou um homem pequeno, como ele, em altura, mas enorme em coragem e abnegação. No dia em que Biden ofereceu a Zelensky a possibilidade de o levar para fora do país, a resposta do presidente ucraniano é lapidar: “precisamos de armas, não de boleia”. Putin é um ditador pequenino e brutal e encontrou à sua frente um homem de grande dimensão, um verdadeiro estadista. Daqueles que o mundo só vê de muito em muito tempo.

5. Por cá tudo na mesma. Na Assembleia da República o PCP continua a ser PZP. Recusou participar no minuto de silêncio em memória pelas vítimas da guerra e quando Rodrigo Saraiva gritou do púlpito: SLAVA UKAINI, fez companhia ao Bloco e ao Chega, que não aplaudiram. Por cá tudo na mesma.

6. Democracia para o PZP é ter um país amordaçado. Um país que permita a interferência absoluta do estado, no contexto social, económico e político, cujo governo controla quase todos os sectores da economia, criando uma casta de oligarcas que enriquecem graças a ligações com o estado que, no que lhe concerne, financia a permanência no poder do regime. O que o PZP quer para o nosso país é um regime que use o capitalismo para benefício estatal, e não do povo, como meio de financiamento de ambições imperialistas. Que veja os seus cidadãos como meras peças de xadrez sacrificáveis. Em suma, uma ditadura onde nem se possa sonhar com a liberdade, sob risco de poder ser preso.

7. “Sem vocês a Ucrânia fica sozinha. Provem que estão connosco, provem que não nos vão deixar sozinhos. E então a vida ganhará sobre a morte, e a luz vencerá as trevas.” - Volodymyr Zelensky

8. SLAVA UKRAINI.