Crónicas

Não, não nascemos bons

Ao contrário de Rousseau, não acredito que nascemos bons e é a sociedade que nos corrompe

1. Disco: acabei na passada semana de ver a última série de “Peaky Blinders”. Sem querer tecer grandes considerações sobre uma das melhores séries que vi, queria só fazer uma chamada à brilhante banda sonora. Nick Cave, Thom Yorke, Joy Division, Anna Calvi, IDLES, The Smile, Marilyn Monroe, são só alguns dos nomes que me acompanharam durante a semana. No Spotify é possível encontrar inúmeras playlists. Calculo que noutras “streamings” aconteça o mesmo.

2. Livro: “Na Cabeça de Putin”, de Michel Eltchaninoff, foi, em boa hora, uma das primeiras edições da nova editora Zigurate de Carlos Vaz Marques. Porque sou pessoa de leituras, entendo que para entender o homem, é preciso saber o que lê, que referências políticas e históricas tem, o seu universo mental, e este livro serve precisamente para isso. De Pedro, o Grande, a Stalin, de Ilyin aos filósofos tradicionalistas russos do final do século XIX. Não esquecer que para o ditador russo a queda da URSS, foi “a maior catástrofe geopolítica do século XX”.

3. Em tudo na vida temos o lado onde queremos estar. Podemos escolher o lado de cima ou o lado de baixo. O lado da frente ou o lado de trás. O lado de dentro ou o lado de fora. O lado esquerdo ou o lado direito. Podemos estar de um lado ou do outro. A escolha é sempre do exercício do nosso livre arbítrio. O que não podemos, ou pelo menos não devemos, é querer estar em todo o lado em simultâneo, ou passar um pano por cima do passado, ignorando, por onde temos andado. Com o dizia ou outro: vou continuar a andar por aí. Nos mesmos sítios e com a mesma postura de sempre.

4. Ao contrário de Rousseau, não acredito que nascemos bons e é a sociedade que nos corrompe. Penso precisamente o contrário: nascemos maus e é a sociedade que nos civiliza. Uns mais e outros menos, carregamos durante toda a vida uma característica que temos em comum com todos os animais: o instinto de sobrevivência.

O desenvolvimento humano comprova o meu ponto de vista. Ao longo da história foram muito mais as vezes em que conseguimos dirimir as nossas divergências recorrendo à violência para impor a nossa razão. No nosso tempo, temos conseguido dialogar e chegar a acordo com muito mais frequência que no passado.

Foi pela civilidade que aqui chegámos, por termos a capacidade de aprender o que somos e o que queremos. Que no meio de nós, existem verdadeiras bestas? Claro que sim. Ainda são muitas, mas cada vez menos. Têm é uma enorme capacidade de se juntarem todas onde não devem. E por nossa culpa.

Por não acreditar no homem bom, é que creio que preciso de ceder parte do que é inerentemente meu quando nasço, os meus direitos naturais, para se estabelecerem relações de socialização com os outros. Somos eminentemente individualistas. Faz parte da nossa essência, mas não se considere o individualismo como egoísmo. São coisas completamente diferentes. É do individualismo, sem egoísmo, que parte o meu relacionamento com os outros, que com eles consigo estabelecer contratos sociais que sejam vantajosos para todos.

Sou muito mais por Hobbes, que em meados do século XVII, dizia que a nossa situação natural é “solitária, pobre, desagradável, bruta e curta”. O que sendo um exagero está mais perto da percepção que tenho do que somos: entidades complexas que encerramos o bom e o mau, e tanto somos capazes de uma coisa como da outra. Tenho plena consciência que já exerci o meu lado mau e prejudiquei outros. Não tenho o dom da santidade e desconfio sempre de quem se vende como um poço de virtudes.

Numa coisa podemos concordar, penso, que o que Hobbes e Rousseau viram, muito claramente, é que os nossos julgamentos sobre as sociedades em que vivemos, são moldados por visões da natureza humana e das possibilidades políticas que essas visões acarretam. Ao contrário das formigas ou das abelhas, que nascem com um instinto político natural sabendo qual o seu lugar na ordem social construindo, assim, modelos altamente cooperativos, de modo que trabalhem em conjunto para o bem comum, nós olhamos para os nossos interesses e queremos que estes sejam sempre tidos em conta nas decisões que impliquem o todo. E temos mais uma coisa que nos prejudica: a mania da reputação e do status que assumimos no conjunto. O desejo de posição social, do mostrar muitas vezes aquilo que não somos, é tão potenciador de conflito como a competição por recursos escassos.

Tudo isto para concluir uma coisa que me parece primordial: o que caracteriza a política é o desacordo. Se pensamos que as nossas convicções são mais importantes do que a coexistência pacífica, então essas convicções são o problema, não a resposta. Insisto nisto, e continuarei a fazê-lo, pois entendo ser o fanatismo ideológico o que nos impede de chegar a consensos.

No concreto, precisamos de um pacto autonómico urgente que nos ponha de acordo sobre que modelo devemos seguir na saúde, na educação e no desenvolvimento. Um pacto que dure mais do que uma legislatura e que nos obrigue a todos a remar para o mesmo lado. A Madeira, o interesse de todos os madeirenses, tem de estar acima das questiúnculas pessoais, das divergências de pataco, das teimosias a que o manual obriga.

É urgente acabar com os interesseiros, os facciosos, os cabotinos, os charlatões, os cobardes, os infectados pela gonorreia politiqueira, os vaidosos, os semeadores de mexericos e discórdias, e todos aqueles que vivem da política sem nada produzir.

Só há um caminho. Gostem ou não gostem.

5. Por causa daquela enorme necessidade de criar auto-estima para almas filosoficamente vazias, é fácil gerar unidade em oposição a governos incompetentes, imorais e não reformistas. Mas, a maioria das vezes, os oponentes que agregam a revolta, não têm nem ideia de como melhorar as coisas.

De acordo com Eclesiastes todas as acções de um homem são fúteis, pois tanto os sábios quanto os idiotas acabam por ter o mesmo destino: a morte. É só pela sabedoria que poderemos ter uma vida terrena bem vivida. E é tão pouca a que vemos por aí.

6. Pedro Ramos disse, na passada semana, que o Serviço Regional de Saúde está a “emergir do caos”. Houve “caos” no Serviço Regional de Saúde? Então não estava sempre tudo controlado?

Não há “caos” no SRS? Tenho ideia de que na véspera do feriado do dia 10, houve doentes que ficaram horas à espera nas ambulâncias para darem entrada no serviço de urgência.

Segundo o Sr. Secretário, o SRS não consegue salvar todas as pessoas. Infelizmente não, isso é certo. Mas há coisas que se podem evitar dizer, ou dizer de outra forma.

Permitam-me que puxe pelos galões: em 2019, no seu programa eleitoral, a IL propunha:

“É evidente a necessidade da criação de unidades de Serviço de Atendimento Permanente (Santo António e Bom Jesus), estrategicamente localizadas, de modo a evitar a habitual sobrecarga do Serviço de Urgência do Hospital Central. As urgências não podem ser a porta de entrada do nosso sistema de saúde”.

Parece que agora, e durante algumas horas do dia, isso é implementado no Bom Jesus.

Nota: consta que houve uma intervenção de um senhor deputado, a defender ser preciso uma lei que acabasse com as listas de espera. Não dê ideias senhor deputado ou ainda vai ver os socialistas laranja do PSD a decretar, no JORAM, que as listas de espera não existem. À boa maneira soviética.

7. “Pois, que aproveitaria ao homem ganhar todo o mundo e perder a sua alma?” – Marcos: 8.36