Crónicas

A última tia

Eu lembro-me desta viagem, deste dia, guardei-o como um dos melhores do início da adolescência

Eu tinha 11 anos quando a minha tia Conceição prometeu que me levava ao Porto Santo se passasse de ano. A minha tia limpava quartos no hotel Girassol e gostava de partilhar o salário com os sobrinhos. Ora comprava livros no Círculo dos Leitores, ora oferecia esferográficas bonitas, daquelas que só se vendiam nas papelarias da cidade e que vinham dentro de estojos.

E um dia decidiu que me levava a ver a praia de areia. A tia, de todas as irmãs da minha mãe, era a mais complicada, mas eu nunca dizia que não a um passeio e, de uma certa maneira, achava graça àquela tia explosiva e difícil. E quando o plano era viajar até ela ficava outra, dava risadas sonoras enquanto metia tudo o que era preciso naqueles sacos de viagem que os turistas deixavam para trás nos quartos que limpava.

Lembro-me que a viagem não veio sem contrapartida, que só havia Porto Santo se passasse de ano. Eu passei de ano e corri pelo cais com um saco como o dela e uns óculos de sol esquecidos por uma sueca no hotel. Havia um quê de estrela de cinema em usar uns óculos de sol, embora o filme fosse assim como o cinema italiano. O barco ia cheio e na travessa a maior parte dos passageiros encostou, agoniado pelos balanços das ondas.

A maior parte, não a minha tia que, indiferente à tormenta, andou abaixo e acima, a sentir a maresia e a dizer que era mais bonito ir ao fresco a ver o rasto de espuma do Pirata Azul. Eu só ganhei ânimo ao avistar o Porto Santo, que, ao longe, era tal e qual como o rótulo das garrafas de água que a minha mãe comprava, diziam que era melhor para a colite. Quando o barco encostou no cais e uma pequena multidão assomou para ver quem chegava, lembro-me do alívio que senti.

Nunca seria boa marinheira, mas isso não estragou o passeio. A minha tia combinou uma viagem pela ilha com um taxista e fomos ver a fonte da areia e almoçar num restaurante. Eu nunca tinha comido fora, descontando, claro, as vezes que me tinham deixado comer na cantina da escola. Sei que, depois, fomos molhar os pés no mar e andar de baloiço. E as horas passaram depressa e nem senti as ondas no regresso. Adormeci com a cabeça em cima de uma mesa a ouvir a minha tia Conceição a falar com umas senhoras do Porto Santo.

Eu lembro-me desta viagem, deste dia, guardei-o como um dos melhores do início da adolescência. A minha tia Conceição tem dificuldade em reconhecer-me, nem sempre sou a Marta. Às vezes sou uma senhora, às vezes gosta de mim, outras desconfia e diz que sou má. Não se lembra que foi comigo ao Porto Santo, nem que me arranjou o cabelo quando fiz o crisma e nas vezes que saí na procissão. As fotografias que temos desse dia foram tiradas com uma máquina Kodak, era dela, aquelas extravagâncias que comprava com o salário de empregada de quartos.

Também já não sabe que foi isso e mais. Foi a mulher despachada que, todos os verões, fazia duas semanas de férias no Porto em casa de uns amigos. Vinha de lá com a mala cheia de tecidos e trazia-me sempre presentes. Depois ia à loja de fotografia revelar os rolos. Uma parte estava tremida, noutras as cabeças dos fotografados não se viam, mas a minha tia tinha muito orgulho nelas e mostrava a quem quisesse ver e também a quem não quisesse.

Também trocava os nomes das terras e não desarmava quando se dizia que Coimbra não ficava assim tão perto de Lisboa. O que não lhe tirava alegria, nem o entusiasmo. E foi assim até aos 80, até a demência a apanhar e lhe tirar a noção de quem é, de quem somos nós. E, naquela confusão em que a cabeça naufragou, sobro eu, a única pessoa a quem reconhece, ainda que por breves instantes. Quando isso acontece dá risadas como antes.