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A Grande Crise de Valores

O número de países com historial de corrupção e de atitudes anti-democráticas é imenso

Em consequência da vontade bélica e dos massacres humanos ordenados pelo Kremlin, a saída da Rússia do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas foi votada em abril e, com 93 votos a favor, 24 contra e 58 abstenções, o país foi retirado do referido Conselho, sendo que agora em maio já se procura o seu substituto. Nas palavras do secretário de Estado americano (o país que apresentou a resolução em questão), Antony Blinken: “Ao suspender a Rússia do Conselho de Direitos Humanos da ONU, países à volta do mundo escolheram responsabilizar Moscovo hoje pelas grosseiras e sistemáticas violações de direitos humanos humano na sua guerra premeditada, não provocada, e não justificada contra a Ucrânia”.

Apesar desta ser uma iniciativa justa e positiva para um mundo orientado para a proteção dos direitos humanos, a verdade é que levanta muito cinismo em relação à própria ONU e esse cinismo pode ser resumido a uma simples pergunta: o que é que a Rússia estava a fazer nesse Conselho?

A crítica à forma como o Conselho de Direitos Humanos é constituído não é nova pois já se tornou evidente que aqueles países que são eleitos para representarem o papel de “paladinos da justiça mundial” são-no independentemente das suas ações nos planos nacional e internacional. O número de países com historial de corrupção e de atitudes anti-democráticas é imenso e encontram-se dispersos por todo o espectro político. A título de exemplo, veja-se os casos de alguns países que são ou já foram membros do Conselho de Direitos Humanos da ONU: China (onde existem campos de concentração); Cuba (que prima pela detenção arbitrária de protestantes); Estados Unidos da América (detentores da infame prisão de Guantanamo); Qatar (alvo constante de crítica em relação à tolerância de escravatura moderna); Venezuela (que tem tido quase sempre “lugar na mesa” desde 2013, ano em que Nicolás Maduro passou a acreditar que era uma manifestação material da Revolução Bolivariana). Como se vê, o Conselho de Direitos Humanos já se encontra contaminado por diversos regimes que, claramente, não estão a favor da preservação destes direitos, mas, mesmo assim, damos palmadinhas nas costas uns dos outros como se, de facto, a luta pela justiça estivesse a ser levada a cabo com objetividade.

A situação de atribuição de lugar a tiranos no Conselho de Direitos Humanos da Organização Unidas é, na verdade, apenas uma parte da crise de valores generalizada que a sociedade contemporânea enfrenta, em que, por um lado, se prega a virtude através da alusão ao discurso político progressista mas, por outro, se validam quaisquer meios para o alcançar de fins desejados (neste caso, a tolerância ou, pior, o negacionismo de autoritarismo estrangeiro para produzir paz e cooperação internacional). Foi esta crise de valores que deu espaço para que o regime de Putin pudesse levar a cabo ações hostis contra a Ucrânia durante muito tempo, tendo este ano escalado a situação exponencialmente e, ainda assim, alguns encontrarem motivos para apoiarem o tirano russo e culparem os ucranianos invadidos.

Vivemos num mundo de mudanças constantes e extremas no plano internacional, e, para o desenvolvimento e manutenção dos valores democráticos que nos são mais importantes, antes de qualquer outra coisa é necessário reconhecer esta crise de valores e superá-la porque, evidentemente, ao ignorá-la, condenámo-nos a reviver as desgraças que se têm repetido por todo o mundo, sempre com os mesmos padrões, desde pelo menos o fim da Segunda Guerra Mundial.