Crónicas

A Índia sob olhares portugueses (e outros): a propósito das imagens de Augusto Cabrita

FOTOGRAMAS

Há uns meses, a propósito do trajeto migratório de uma família madeirense para o Brasil e, mais precisamente, de José Fernandes, referia-me fugazmente neste espaço à Goa da década de 1950, uma Goa ainda sob domínio português. Dizia então que José esteve ali cinco anos ao serviço do exército português, de 1951 a 1957, “provavelmente num contexto militar conturbado, caracterizado por revoltas, movimentos de sublevação popular (e muitas ações pacíficas, também) que, em última instância, desembocam no ataque da União Indiana ao Estado Novo de Salazar a 17 de dezembro de 1961, o qual se traduz numa célere vitória das forças indianas, que em menos de três dias ocupam o território”.

Este será um duro golpe para o regime do qual os avós maternos da artista Ana Janeiro eram opositores, tendo precisamente migrado para a dita Índia Portuguesa em 1951 e aí permanecido por dez anos, regressando à metrópole aquando do fim da presença portuguesa. Do espólio por eles deixado encontram-se cartas que a avó de Janeiro escreveu à sua mãe, que estava em Lisboa, e que constituíram a base para um aprofundado e denso trabalho de “pós-memória” da artista que conjuga performance, fotografia e vídeo, na “(re)construção de uma história que é simultaneamente pessoal e colectiva”. No vídeo produzido para o número 35 da Interact – Revista Online de Cultura, que co-coordenei recentemente com Maura Grimaldi, Janeiro revisita o livro “Álbum Índia Portuguesa 1951 – 1961”, folheando-o “ao som da leitura das cartas” levando-nos pela “experiência da avó” durante aquele período, dando aos acontecimentos pessoais a densidade da interseção com os acontecimentos históricos (e aos históricos, a emotividade da experiência pessoal).

É também nessa altura, mais precisamente em 1960, que Augusto Cabrita (1923 - 1993) vai aos territórios portugueses da Índia, e faz aquilo que podemos designar de um ensaio no género “fotografia de viagem”. Uma seleção das imagens por si produzidas nesse contexto dão forma à exposição “Índia Portuguesa”, atualmente presente no Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s. A nota biográfica que acompanha o catálogo da exposição destaca os dotes fotográficos de Cabrita, que foi igualmente realizador, produtor para a RTP e diretor de fotografia – realçando-se neste domínio o seu contributo para o filme/documentário Belarmino, de Fernando Lopes, 1964.

As imagens, apresentadas como de alguma forma sendo inéditas e produzidas num contexto que, em grande medida, se desconhece, têm o formato de 6x6, um dito médio formato resultante das capturas de uma Rolleiflex, as quais, em parte por serem feitas com afetividade, em parte por a câmara se colocar abaixo do peito, foram de acordo com o filho de Cabrita, Augusto António Peixinho do Carmo Cabrita, consideradas pelo pai como “saídas do ventre”. As impressões, feitas hoje a partir de digitalizações dos negativos originais, são, na maioria das vezes, acompanhadas por lacónicas legendas, a não ser quando as tiragens positivas deixadas pelo autor se faziam acompanhar de notas que nos trazem informações mais precisas, permitindo, por exemplo, identificar os protagonistas de um dos retratos exibidos como “fumadores de opium”.

António Sena, pioneiro historiador da fotografia em Portugal, inscreve Augusto Cabrita no âmbito de uma geração da década de 1950 que renova o pensamento fotográfico pela sua modernidade e experimentalismo (nos enquadramentos, altos-contrastes cuidados, oposições, sequências, nas formas inusitadas e pensadas…). Um olhar humanista, por vezes quase que neo-realista, atravessa ainda estas imagens de paisagens, retratos e ritos, porventura sob a a influência da exposição “The Family of Man”, organizada por Edward Steichen no MoMA em 1955, enquanto ensaio de afirmação de uma necessária união num contexto de diversidade global, sobressaindo a dimensão universal, e universalista, da vivência humana. Nas fotografias de Cabrita, o olhar do viajante pela diversidade e exotismo dos hábitos, costumes e rostos locais, sobrepõe-se (quase) totalmente à evidência de uma presença ou legado português e cristão naquele território.

Optando por deixar ao leitor a possibilidade de ver exclusivamente ao vivo (e a preto e branco) as imagens agora impressas para a ocasião da exposição – as quais foram feitas, sempre que possível, de acordo com as indicações técnicas deixadas pelo fotógrafo –, ilustra este breve texto uma imagem nada exótica produzida não em Goa, Damão ou Diu, mas em Mumbaim, não em 1960, mas (provavelmente) em finais do século XIX. Esta, graças à portabilidade dessas coisas chamadas cartes-de-visite que democratizaram o retrato em fotografia, integra hoje o espólio deste Museu de Fotografia – Atelier Vicente’s.

Ana Gandum
com a colaboração do Museu de Fotografia da Madeira – Atelier Vicente’s.