Crónicas

Sem compaixão

O pontapé de saída é este domingo, mas todos os jogos terão a sombra dos mortos

Se o mundo funcionasse como por aqui, fechava tudo no primeiro dia de Dezembro e só voltava a abrir depois do Dia de Reis, mas a Madeira é um grão de areia e tem este costume de viver a Festa deste jeito próprio, quase dá a impressão que não há outra maneira de celebrar. Ou deste modo ou então não lembra ao Natal.

E esta forma é de correr para fazer tudo o que é próprio da época. Limpar a casa, amassar bolos e broas, ir aos jantares da empresa e fazer combinações para depois do trabalho, que sabe bem encontrar amigos, primos afastados e pessoas conhecidas na Avenida Arriaga, com a cidade a brilhar, cheia de luzes e aquele cheiro a carne vinha d’ alhos no ar.

Entre aquela agitação e embalados pela música da época, as despedidas são calorosas e com promessas de que não se vai esperar um ano para rir, falar e beber, enfim, para o convívio. E, com o tanto que nos preocupa, chega-se a casa de alma cheia, a pensar que, no mundo, há muita coisa que o dinheiro não paga, nem compra.

Parte disso vem das luzes, da música, dos sorrisos e de se ter mais um dinheirinho no bolso. É certo que nos últimos anos a Covid-19 roubou o entusiasmo. As restrições cancelaram jantares, obrigaram a testes e a vacinas, mas 2022 também não será uma Festa daquelas à moda antiga. Este ano há bola, há Mundial e, se tudo correr bem, havemos de juntar a tudo o que já aqui foi dito o fervor patriótico, aquilo de se enrolar na bandeira e gritar Portugal a cada golo da selecção.

Não é um Mundial normal e, nisso, a data é o menos importante. Por muito apoio que nos mereçam os jogadores, por muito que o coração dos madeirenses esteja duas vezes com a equipa por causa do Ronaldo, é impossível não pensar nos mortos, os milhares de mortos caídos na construção dos estádios e no desrespeito pelos direitos humanos. Isso eu não entendo, nem consigo justificar, nem mesmo quando me dizem que, por cá também há miséria e mulheres vítimas de violência doméstica.

Eu sei que há e não me conformo, não justifico. Miséria é miséria, aqui e no Qatar e não é por haver milhões e um luxo para além do razoável que fica melhor, que se pode esquecer e encolher os ombros, dizer que já está decidido. O Mundial vai ter mesmo lugar lá, o pontapé de saída é este domingo, mas todos os jogos terão a sombra dos mortos. E não consigo desligar essa imagem do futebol, dos infelizes que foram em busca de melhores salários e que não resistiram a trabalhar debaixo de temperaturas de 50 graus.

Não consigo esquecer isso e, talvez seja ingenuidade, mas acho que pesa ainda mais por ser quase Natal, por ser um tempo de boa vontade, de gestos de atenção e carinho. Eu deixei de ter fé há muitos anos, não vou à missa, não rezo e, ainda assim, foi na igreja que me ensinaram a ter compaixão. Este Mundial, que calha por altura da Festa, tem muito dinheiro e pouco de boa vontade, de respeito pelo outro, sobretudo quando é mais pobre, diferente ou mais frágil. Condições que, em um momento ou outro, nos podem atingir.