Crónicas

“Há muito para fazer quando já não pode fazer mais”

Eu não sabia como a minha vida ia mudar, que o Google ainda não tinha sido inventado

Quando cheguei ao serviço ainda não perdera a cara de miúda e vestia-me muitas vezes de preto. As minhas tias diziam que parecia uma viúva, mas eu gostava tanto do chapéu de veludo e das botas Doc Martens, que foi a custo que as descalcei. O doutor queria ter um registo certo e não acreditou nos 61 quilos que a balança marcava. Sem as botas tirou-me dois quilos e fez as contas para o tratamento.

Eu não sabia como a minha vida ia mudar, que o Google ainda não tinha sido inventado. Lembro-me do dia bonito, de céu azul e quente e de como me pareceu desadequado ter um chapéu de veludo na cabeça, estava cheia de calor. E o calor só me deixava mais ansiosa, sem saber se fora boa ideia vir sozinha à consulta, mas ouvi com atenção a enfermeira chefe explicar tudo o que estava prestes acontecer.

Os meus dias iam rodar ao ritmo de tratamentos, exames e consultas. Não podia falhar, nem faltar. Tinha percebido? Eu abanei a cabeça, era tão simples e tão complicado, a quem me podia queixar e reclamar, seria a única insatisfeita com aquilo de ficar sem cabelo? Era temporário, eu sabia que era, mas parecia-me injusto estar doente e ficar sem cabelo, aquele cabelo pesado e lustroso, aquela parte de mim.

E sei que fui ver o mar e passear, que marquei o primeiro tratamento para o fim da tarde e ninguém se opôs. Talvez pela cara de miúda, por me vestir de preto dos pés à cabeça ou por causa do chapéu despropositado quando abri a porta da sala, quando atravessei a fronteira entre a infância e a vida adulta, fui acolhida com sorrisos e carinho, sem saber ainda que aqueles enfermeiros seriam parte da minha vida para sempre.

Não ficámos amigos, não nos vemos todos os anos, nem temos um jantar ou encontro para lembrar o facto de nos termos cruzado no serviço, mas temos um elo. O meu liga-me à doença, que foi ao mesmo tempo um momento delicado e de transição, da perda da inocência. Foi doloroso, teve revolta e dor, mas teria sido diferente se não estivessem lá na sala de tratamentos do hospital para descomplicar enquanto mediam a tensão, contavam piadas e comentavam a primeira vez que me tinham visto de preto de botas.

O deles, das enfermeiras e do enfermeiro, é feito de cuidados e memórias. O enfermeiro Carlos, com quem me cruzei outro dia numa reportagem, falou-me das vezes em que encontra os antigos doentes, os que sobreviveram. Nem sempre se fala da doença, o cancro ainda é tabu, há quem não olhe para trás, nem queira lembrar, mas todos sabem bem onde se encontraram. E há os outros, do qual só ficaram as memórias.

E, num sorriso, o mesmo que me animou lá, em 1994, fala de vários doentes, lembra-se da vez que ficou só lá, a segurar na mão, quando já fora dito que nada havia a fazer. É que ainda “há muito para fazer quando já não se pode fazer mais”, explica-me, nem que seja só isso estar lá, a segurar a mão.