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The day after

É necessário reforçar a literacia em saúde, convencer as pessoas de que são os principais responsáveis pela sua própria saúde

Tornou-se banal afirmar que tudo mudará após a pandemia. A vida de todos nós será afectada, irreversivelmente, por este trágico e aparentemente inesperado acontecimento, de âmbito mundial, com graves repercussões na Saúde Pública e na Economia.

As grandes catástrofes, normalmente, determinam avanços na arte de curar.

Um exemplo: antes da I Guerra Mundial, raras eram as transfusões sanguíneas praticadas e eram-no, sempre, de pessoa a pessoa.

A guerra, com a necessidade de sangue para milhares de soldados, acabou por levar à descoberta de técnicas de preparação e armazenagem de sangue, com aditivos. Descobriram-se os efeitos anticoagulantes do citrato (derivado da fruta) que permitia manipular o sangue e passou a ser conservado sem que coagulasse.

Depois de pago o preço pela tragédia que vivemos, deveremos retirar ilações que nos permitam efectuar reformas que nos protejam de consequências ainda mais graves de previsíveis situações idênticas.

Uma das lições que se podem retirar dos actuais acontecimentos é que necessitamos de investir mais em Saúde, em detrimento de outras áreas eventualmente menos fundamentais. O subinvestimento em Saúde dos últimos anos, em Portugal, pôs em risco a resposta atempada à crise e terá causado danos, a diversos níveis, quer no serviço prestado às populações necessitadas, quer no desempenho dos profissionais de saúde, motivando acrescido esforço, faltas de segurança, desgaste físico e psicológico.

Devia aproveitar-se para fazer (iniciar) a tão falada e necessária reforma da Saúde. A reforma da Saúde não implica só a importação de técnicas, muitas vezes copiadas de outras actividades; no que respeita à segurança (listas de verificação, controlos, procedimentos, etc.), melhoria da eficiência e da eficácia, actualização tecnológica, técnica e científica, melhor gestão de meios e de pessoas, que podem permitir a execução de maior número de actos (por exemplo: mais cirurgias com a mesma quantidade de esforço; menores tempos de internamento por patologia; melhor prevenção e promoção da saúde; menores tempos de espera para consultas e exames; etc...).

É necessário ter em conta a complexidade e a natureza variável e humana da medicina. É imperativo considerar-se o aspecto subjectivo do sentimento de conforto (ou não) e de confiança do doente, e do profissional de saúde, que são muito importantes no processo de cura e dificilmente são traduzíveis numa equação matemática. Assim como não deve ser descurado o facto de que imprevistos, durante o processo, que alterem estados de alma, quer do paciente quer do profissional, podem interferir decisivamente, no processo de cura.

Tudo o que desumaniza o acto de tratar, de curar, é prejudicial ao paciente e ao profissional de saúde. Coisas tão simples e aparentemente insignificantes, como a cadeira desconfortável onde o doente se senta (às vezes durante muito tempo) enquanto aguarda por ser atendido, a rispidez com que, por vezes, é recebido, a atenção ao computador em vez de ao doente, o ambiente da sala onde se encontra...

O profissional de saúde, sendo humano, tem todas as humanas contingências, diversas vezes agravadas por obrigação de atender a actos de pura burocracia, e conflitos vários, quer no âmbito da sua vida pessoal e familiar, quer no âmbito do serviço onde se insere.

É necessário ter em linha de conta, na urgente reforma da Saúde, um melhor rendimento dos serviços sem descurar os sentimentos que doentes e profissionais de saúde experimentam ao longo do processo.

As estratégias necessárias para gerir uma unidade de saúde podem e devem ir beber à experiência de outras actividades mas, idealmente, devem ser concebidas para a gestão de uma unidade de saúde com todas as sua especificidades.

É necessário reforçar a literacia em saúde, convencer as pessoas de que são os principais responsáveis pela sua própria saúde.

A pandemia veio pôr em evidência o facto de que não estamos isolados. O que afecta uma pessoa, uma rua, uma aldeia, um país, antes de podermos dar por isso..., afecta o mundo inteiro.

A interajuda, entre países, revelou-se fundamental. Seria avisado, a exemplo do que se tem feito com a Economia, que se procedesse à “globalização da Saúde”, para que os países com menos recursos possam ter condições de identificar atempadamente eventuais surtos que, inevitavelmente, irão surgir, e tenham capacidade de se lhes oporem e de comunicarem de imediato à “rede mundial de serviços de saúde” de modo a que todos se possam preparar, partilhar conhecimentos e meios, embora com a OMS como pano de fundo.

Evitar-se-iam, certamente, muitas surpresas desagradáveis.