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28.000 mentecaptos

Estou habituado a que neste país à beira-mar plantado se “comprem as coisas pelo seu valor facial” e em que “tudo que luz é ouro”. Uso estes dois ditados para me referir ao abaixo-assinado para “degredar” Mamadu Ba, atualmente com mais de 28.000 subescritores, pelas declarações que proferiu no Twitter contra o Tenente-Coronel Marcelino da Mata Militar que integrava as forças africanas do exército português. Este degredar vem direto do tempo de Salazar que degredava os opositores para o Tarrafal. Mamadu, apesar de ser português, reúne todas as condições para na ótica dos (trump)racistas ser degredado: é “preto”, desbocado e põe em causa um herói pátrio.

Mamadu Ba, dirigente da Associação SOS Racismo, desconsiderando a justeza, ou não, das suas intervenções é sem sombra de dúvida um provocador, pela forma acutilante e contundente como se expressa em relação a questões fraturantes relativas ao racismo e às minorias. Quem não se lembra de Mamadu ter classificado a polícia de “bosta da bófia”, a respeito da intervenção desta no Bairro da Jamaica? Contudo não vejo razão para o levantamento deste coro de protestos salazarentos em defesa da honra e do mérito de Marcelino da Mata. Trata-se efetivamente do militar mais condecorado da história portuguesa, mas não podemos desconsiderar que foi um ex libris do antigo regime, e apesar de ter sido um homem muito corajoso, um militar eficiente, não se deve ignorar que o facto de ser negro serviu “às mil maravilhas” a propaganda do regime. Apesar de serem ao “serviço de Portugal”, muitas das suas atuações foram objetivamente crimes de guerra.

Marcelino da Mata não foi um “menino de coro”, diáfano e etéreo, à semelhança de D. Nuno Álvares Pereira. Foi um homem que fez um trapalho por vezes muito sujo, num contexto duma guerra suja e fora de tempo, objeto da condenação da ONU e de todo o mundo, sem exceção no qual, nas palavras de Salazar, nos encontrávamos “orgulhosamente sós”.

Nós como nação lidamos mal com a nossa história, no que concerne às “descobertas”, à colonização em geral e à guerra colonial em particular. À retórica e propaganda do Estado Novo, sucederam em sentido diametralmente oposto as teses as teses revolucionárias do pós 25 de Abril e o assunto continua tabu, com posições extremadas e cristalizadas, sem ainda ter sido objeto de estudo científico, rigoroso e desapaixonado, sem complexos nem rancores, que permita ver com clareza os percussores, os factos e a respetiva linha do tempo, que permita simultaneamente desmontar tanto as teses heroico/pátrias do Estado Novo como a “debandada” que lhe sucedeu. Enquanto isso não suceder, continuaremos a viver mal com a nossa história.

Temos a tendência de classificar um indivíduo de herói, quando milita a nosso favor e facínora, quando se nos opõe, sendo, contudo, a mesma pessoa a cometer os mesmos atos. O que varia é exclusivamente o ponto de vista. Para o Estado Novo, Mouzinho foi um herói e Gungunhana um vilão ao passo que para o seu povo, Gungunhana foi um prestigiadíssimo imperador do Império de Gaza, cognominado o Leão de Gaza, (atualmente Moçambique), ao passo que Mouzinho era visto como um criminoso colonizador.

No day after de todas as guerras, os protagonistas voluntários ou involuntários são votados ao esquecimento, até à indigência, transportando consigo as mazelas causadas pela guerra a que a Pátria os obrigou e da qual lava as mãos como Pilatos. As medalhas e honrarias e os proventos ficam apenas para alguns poucos. Os africanos que serviram no exército português, foram na sua imensa maioria cobardemente abandonados por Portugal à sua sorte, tendo-lhes sido recusada a cidadania portuguesa, ficando sujeitos a todos os ódios e vingança, da parte dos antigos inimigos e atuais governantes dos seus países.

Fico triste ao constatar que passados 50 anos e duas gerações sobre os factos ainda haja tanta gente a subscrever acefalamente e sem questionar a visão Salazarenta da história e para os quais ainda “A Pátria não se discute”.