Crónicas

Da tentação

Ultrapassando a tendência dominante para uma certa “McDonaldização” do cinema, podemos ver já no Funchal o último Paul Schrader, “The Card Counter: o Jogador” — filme intenso que vem culminar em coerência um labor artístico de quase meio século. Argumentista e realizador, Schrader sempre perscrutou nas suas histórias a condição humana, observada ou interrogada numa perspetiva moral: as escolhas têm consequências.

(Ainda me lembro do “American Gigolo”, na magnífica projeção do Cine Casino dos anos oitenta: luxo, hedonismo e crime, e o protagonista finalmente “encostado às boxes”, e a ele próprio, preso numa teia aonde iria cair pelas suas opções de vida. A culpa, tema quase obsessivo do cinema de Schrader, já fazia, então, a sua aparição).

Um filme não se conta, mas vamos à fórmula breve: figura esquiva e sombria, William é um jogador errante entre cidades e casinos, onde aplica a sua enorme sofisticação a ganhar campeonatos de póquer... Na verdade, ele é um “contador de cartas” (prática ilícita), o que lhe dá um domínio notável sobre o desenrolar do jogo — prática treinada em dez anos de prisão, onde cumpriu pena militar por ter sido considerado cúmplice nas torturas de prisioneiros em Abu Ghraib, no Iraque. A cela foi o espaço monástico onde ele aprendeu a solidão: a escrita de um diário, a rotina dos ritos, a matemática do póquer... A entrada em cena do jovem Cirk, quando o protagonista vai assistir à palestra do major John “Gordo”, seu chefe e instigador de torturas no Iraque, vai atrair William para o deambular silencioso da tentação, num crescendo assolado pelos fantasmas grotescos das cenas de tortura (onde sucumbiu o pai de Cirk), ao mesmo tempo que ensaia uma hipótese de redenção ao “reconduzir” o jovem Cirk ao encontro da mãe. Mas, a realidade é menos controlável que um baralho de cartas, e a narrativa “diarística” vai levar-nos até à consumação da vingança, que parece ser, no labirinto da culpa e do remorso, a redenção possível... pois traz de novo o castigo da prisão!

Se tivesse que dar um subtítulo ao filme, sugeria algo como “Da Tentação”. Razões? Para além da notável interpretação de Oscar Isaac, um rosto incrível de secura e mistério, temos de novo o tópico recorrente dos personagens de Schrader (não esqueçamos que foi o argumentista de “Taxi Driver”): homens solitários investidos de uma missão muito sua, criando a sua “realidade” com enorme obstinação e disciplina, encenando uma ilusória fuga (ou salvação) à medida que se enredam mais e mais no labirinto da tentação e da culpa... Como diz várias vezes o “Contador de Cartas”: nada justifica o que fizeste, cada um é responsável pelos seus atos, há sempre consequências. E temos o corpo, território dessa luta inglória. Como nas cartas: observar, avaliar, escolher. Vontade e ação, os dois vetores da questão moral — onde se decide a verdade antropológica do cinema de Paul Schrader. Desde o princípio do filme se percebe que há todo um “enredo” em ação dentro da cabeça do protagonista, e que ele próprio está enredado. Corpo e palavra: o famoso itinerário da tentação. Já está no Génesis: não é possível ganhar à astúcia da serpente. Recomendava, há muitos anos, um velho mestre: não dialogues com a tentação, pois é certo que não levarás a melhor! Mesmo na mesa do póquer, percebe-se em surdina o diálogo secreto com a tentação: uma vingança está em curso de acontecer...