Coitados dos veados e javalis

Eu não sou caçador. Nunca fui. Nem o pretendo ser. Praticar uma atividade que resulta na morte de um animal é algo que não me apraz, nem por desporto nem por necessidade. Tirando alguns insetos e répteis, nunca matei nenhum animal. Não, pelo menos, no seu habitat natural. E mesmo no meu “habitat natural”, muitas são as vezes em que eu opto por os deixar fugir pela janela ou pela porta ou até mesmo por os deitar na sanita, ainda vivos, na expetativa de que vão viver para longe. Eu não sou um defensor acérrimo do direito à vida dos animais, mas também não sou daqueles que acha que os animais podem ser mortos indiscriminadamente, sem quaisquer critérios nem restrições. Matar animais por necessidade ou sobrevivência é algo compreensível, aceitável até, porque faz parte da condição humana. Já matar – ou fazer sofrer – animais por desporto, prazer ou diversão/entretenimento é algo que me faz muita confusão. Bastante até. E é por isso que eu não sou apologista da caça desportiva. Nem das touradas, claro.

Eu não sou apologista da caça desportiva, mas também não sou hipócrita. Não sou daqueles que gostam de se sentar à mesa para comer um belo naco de carne ou de peixe e dizer que a caça deveria ser abolida porque os animais têm o direito à vida como qualquer ser humano. Sou omnívero. Alimento-me de carne, de peixe e de vegetais. E sei muito bem de onde vêm cada um destes alimentos. Não sou como o meu sobrinho que pensava que as carnes eram como os cereais: que vinham de sementes, tal como o arroz. E a não ser que eu me torne herbívoro – já estive mais longe –, não me sinto no direito de criticar quem quer que seja que tenha matado um ou mais animais que vão servir de alimento para outros, independentemente de o terem feito numa caçada ou num matadouro. É verdade que não é bonito de se ver – não, pelo menos, aos olhos de quem não é caçador –, mas é bom que todos nós tenhamos consciência de que é isto que acontece todos os dias, a toda a hora: centenas, milhares e milhões de animais que são mortos para consumo humano. Só em Portugal, são mortos mais de 200 milhões animais por ano para consumo humano: galinhas, patos, perus, coelhos e lebres, suínos, bovinos, ovinos e caprinos, cavalos, burros, javalis, veados, avestruzes, codornizes, pintadas e perdizes. Isto sem contar com os peixes. Sim, porque os peixes também são animais. Em peso, são capturadas em Portugal mais de 100 mil toneladas de pescado de água doce, marinho, crustáceos e moluscos: lampreias, sáveis, enguias, carapaus, cavalas, sardinhas, gambas, lagostins, caranguejos, berbigões, chocos e polvos, entre outras espécies. Como se não bastasse, ainda importamos mais de 300 toneladas de peixe por ano, fazendo de Portugal o maior consumidor de peixe da União Europeia e o terceiro maior consumidor de peixe do mundo.

Em 2018, foram mortos quase 257 milhões de aves e mamíferos em Portugal. Só em carne, os portugueses consumiram mais de 1 milhão e 200 mil toneladas. Em peixe, foram mais de 600 mil toneladas. Por dia, foram mais de 3 mil toneladas de carne e de 1,5 mil toneladas de peixe. Ou seja, por cada português, foram consumidos mais de 300 gramas de carne e de 150 gramas de peixe por dia. No Natal, este consumo deve ser muito superior, mas os portugueses continuam a ficar chocados sempre que veem imagens de animais que são mortos para consumo. Desta vez ficaram chocados com o facto de terem sido mortos mais de 500 veados e javalis numa caçada na Quinta da Torre Bela, na Azambuja. Aliás, mais do que chocados, parece que muitos ficaram indignados, tudo porque acham que foram mortos muitos animais numa só caçada. Há quem ache mesmo que não se tratou de uma caçada, mas sim de um extermínio, e que os caçadores deveriam ser criminalizados. Ora bem, eu não sei quantos veados e javalis é que existem em Portugal, mas duvido muito que esta caçada tenha resultado no seu extermínio. Se resultou, sim, devem ser criminalizados, não só os caçadores como todos os responsáveis pela organização desta caçada. Se não resultou, parem de dizer que foram mortos muitos animais numa só caçada. Se em vez de veados e javalis tivessem colocado galinhas e porcos, não teriam sido centenas de animais mortos. Teriam sido milhares, centenas de milhares, quase um milhão. Sim, quase um milhão de galinhas e porcos mortos diariamente. Em 2018, foram mortos, em média, cerca de 871 mil galinhas e 17 mil porcos por dia. A não ser que aqueles veados e javalis tenham sido deixados ao abandono e não sejam consumidos por outros animais – nomeadamente seres humanos –, parem de ser hipócritas e de dizer que ficaram chocados e indignados com a morte daqueles animais. Por momentos, fazem-me lembrar o poema de Sophia de Mello Breyner Andresen sobre as pessoas sensíveis, que diz, e passo a citar, «as pessoas sensíveis não são capazes / de matar galinhas / Porém são capazes / de comer galinhas». Mas se ficaram indignados porque acham que aqueles veados e javalis não vão ser consumidos, façam o seguinte: substituam o porco, o peru, o cabrito ou o borrego da vossa ceia de Natal por um daqueles veados ou javalis e parem de criticar sem moral. Além do mais, numa altura em que Portugal atingiu os 6 mil mortos de pessoas por COVID-19, nem sei porque é que estamos a falar de animais.

Publicaram uma fotografia na Internet com mais de quinhentos veados e javalis mortos numa caçada e logo os portugueses ficaram chocados. Chocados e indignados. Eu só tenho pena de que, em vez de veados e javalis, não tenham publicado uma fotografia com as mais de 6 mil pessoas mortas por COVID-19. Talvez os portugueses ficassem mais chocados e indignados com o seu próprio comportamento do que com o comportamento daqueles caçadores.

Renato Marques

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