Crónicas

A vida dos livros

Retomo este texto iniciado no fim de agosto no dia em que desaparece Joaquín Salvador Lavado, conhecido como Quino, autor da personagem de banda desenhada, Mafalda

Não sei quanto a vós, mas terminei agosto sem ler metade do que queria ter lido.

Sou leitora compulsiva desde criança, quando perdia noites a ler debaixo do lençol, com o candeeiro debaixo da cama a tentar fintar a supervisão dos meus pais quando vinham conferir se havia luz por baixo da porta. Lembro-me de lhes ouvir os passos e apagar a luz à pressa e deixar-me ficar no escuro, a aguardar que se recolhessem e deixassem de perscrutar o sono que eu não tinha. Do aborrecimento que era isto acontecer-me a meio de uma passagem que considerava decisiva e ter de aguardar aquele tempo, às escuras, o livro numa mão e a outra a tatear o candeeiro às escuras, à espera do momento de o poder voltar a acender.

Foi assim que descobri a maior parte dos autores e autoras da minha adolescência. Na altura adotei um método: ao experimentar um ou uma autora, lia todos os títulos que conseguia requisitar nas bibliotecas. Foi assim que fiquei maravilhada com Pearl S. Buck (o primeiro que li foi «Ventos do Ocidente Ventos do Oriente»), com Margaret Mitchell e «E tudo o Vento Levou», com John Steinbeck e vários dos seus títulos, sendo que o que mais me marcou foi «A Leste do Paraíso», muito por causa da ambiguidade e fascínio que me suscitou a personagem Cathy, a mãe de Cal e Aaron, a mulher que se recusou a entrar nos vários papéis que lhe estavam destinados, a pecadora caída em desgraça num universo em que às mulheres é reservado o lugar de virgens, mães de família ou prostitutas. Foi também por essa altura que desgostei de Ernest Hemingway, ainda que não conseguisse precisar bem porquê (hoje sei-o, aborrecia-me de morte toda a virilidade transbordante das suas personagens masculinas por oposição às femininas, que se limitavam a ser um bocado idiotas e um peso morto para o herói que invariavelmente as tinha de salvar de alguma coisa). Não sei se estarei a ser injusta, desde a adolescência nunca mais voltei a ler Hemingway. Também não voltei a ler Marion Zimmer Bradley, que foi verdadeiramente inspiradora, toda a alternativa às lendas arturianas, a reabilitação e empoderamento das personagens femininas… e a deceção de ter descoberto, anos mais tarde, que a autora era uma agressora.

Naquela altura lia muito apesar de não ter maturidade para compreender muito do que li. Lembro-me de ter relido Somerset Maugham anos já adulta e ter a perfeita noção de que a primeira leitura tinha sido uma leitura quase cega. Foi também na adolescência que li Nietzsche e achei que era o maior filósofo que alguma vez leria, até ter lido tantos e tantas outras que me fizeram pôr em perspetiva essa primeira leitura (ultra) entusiasmada. Ou de ter tentado ler José Saramago na adolescência e não ter avançado (perdoa-me, Violante) e tê-lo (re)descoberto já depois dos 30. Muitos livros são assim, crescem connosco, devem ser lidos a seu tempo, sob pena de não os percebermos ou abandoná-los por impreparação. Tempo para os revisitar é também precioso e o mesmo livro não é, de facto, o mesmo livro.

A determinada altura, praticamente deixei de ler ficção. Não consigo precisar exatamente quando. Passei para ensaios ou livros técnicos, e tenho alguma dificuldade em regressar, como se a realidade transborde em demasia e não deixe qualquer espaço para o que existe fora dela. A exceção acontece apenas com algumas poucas autoras: Clarice Lispector, Margaret Atwood, Maria Velho da Costa, Elena Ferrante. Volto e voltarei sempre, de vez em quando, a «Novas Cartas Portuguesas» (Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno), à «Paixão Segundo G.H.» e ao «Todos os Contos» (Clarice Lispector). E regressarei de quando em vez à trilogia «A Amiga Genial». Este texto começou a tomar forma com a notícia de um novo título desta última: «A vida mentirosa dos adultos». Pouco sei deste novo título, a não ser que sobe para o topo da minha lista de espera. E está à espera, na estante, à espera de que tenha tempo para o iniciar, porque sei que é um processo de um só fôlego. Mas o título é promissor e lembra essa outra criança cujo criador nos deixou na semana que terminou.

Retomo este texto iniciado no fim de agosto no dia em que desaparece Joaquín Salvador Lavado, conhecido como Quino, autor da personagem de banda desenhada, Mafalda. Não tenho memória precisa sobre quando a descobri. Sei que me tem acompanhado ao longo dos tempos, rebelde, contestatária, feminista, inquisitiva, inconformada, sempre atual. Não consigo dissociá-la do espírito filosófico, de quem não deixa de se admirar com as coisas do mundo, de quem, segundo as palavras de Quino, faz «(…) pensar as pessoas sobre as coisas que acontecem».

Mafalda viveu na ponta do lápis de Quino durante 9 anos, de 1964 a 1973, e quando Quino fechou a sua última tira eu ainda não tinha nascido. Li-a muito mais tarde, na adolescência, e desde então tem sido boa companhia. A verdade é que a Mafalda nunca deixou de resistir à sopa de cada dia, o que significa que nunca deixou de ser uma criança que se espanta com as coisas do mundo e com os erros do mundo. Uma pessimista que nunca deixou de tentar cuidar do globo, medindo-lhe a febre, traçando-lhe uma dor na Ásia (hoje provavelmente também na Europa e na Améria). Mas manteve-se à sua cabeceira e nunca o abandonou. Uma pessimista seria conformada e Mafalda nunca o foi. Não sei se Quino alguma vez pensou regressar à contestatária que, qual criança, ainda espera que algo melhore.

Mafalda era argentina e, segundo Quino, a existir provavelmente não chegaria à idade adulta porque seria uma entre milhares de pessoas que desapareceram durante a ditadura militar argentina que obrigou Quino ao exílio. Uma menina que suspira por um mundo melhor do que o que recebe e que tem uma amiga (pequenina) chamada Liberdade dificilmente sobreviveria num universo de medo e censura, como acontece quando se quer manter o poder a todo o custo, um universo que é defendido por alguns movimentos que têm vindo a ganhar espaço e que nos devem deixar alerta.

Muito obrigada pela Mafalda, mas também pelo Filipe, pela Susaninha, o Manelito, Miguelito, pelo Gui. E claro, a Liberdade. A Liberdade, sempre.

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