Crónicas

As primeiras chuvas e outras complicações

Molhada e enfiada naqueles trajes que a minha mãe insistia que eram os melhores – como camisolas de angorá – a adolescência era ainda mais estranha para alguém que, como eu, não tinha o tamanho adequado

Está uma tarde de céu carregado, daqueles forrados a nuvens gordas e cinzentas e no mail caiu já uma mensagem de aviso de mau tempo, de chuva e vento. E, se calhar por estar à secretária de frente para os eucaliptos, aqui na velha casa da infância, lembrei-me de como me afligiam as primeiras chuvas e as outras a seguir das primeiras.

A adolescente que fui não se entusiasmava muito com aquele Laranjal de agricultores onde era vital que as estações seguissem caminho, sem excessos e a chuva viesse em quantidade com Outubro já a meio, quando, debaixo dos eucaliptos e dos pinheiros, as açucenas cor-de-rosa davam flor. Nos anos bons, os crisântemos da minha mãe enchiam o jardim e os estrangeiros tiravam fotografias e voltavam pasmados para as terras de onde vinham.

A minha mãe costumava dizer isso e metia-se a meio do jardim para ficar também nas fotografias. E, embora fosse bonito de ver, as flores não me tiravam a aflição de saber que, mais dia, menos dia, o céu ia abrir-se e despejar chuvas grossas e transformar tudo em terra molhada, encher tudo de lama e obrigar-me a atravessar o temporal com um guarda-chuva, em viagens de autocarro penosas.

E, por muito que eu rogasse por um Outubro quente e soalheiro, um mês que desse para usar as roupas de verão e os sapatos brancos, a chuva obrigava-me a ir a vestir umas saias de lã feitas em casa, quentes e grossas, naqueles autocarros velhos e cheios, onde, para evitar os pingos, se fechavam todas as janelas e se respirava um ar abafado, com cheiro a pessoas e a comida das marmitas do almoço.

Eu teria, depois, de sair na paragem para a escola e cruzar-me com as outras miúdas que, como por magia, tinham sempre uns anaroques bonitos, uns sapatos resistentes à água e pareciam atravessar a manhã de aulas sem incómodos, sem ter a roupa molhada e os pés frios. E não lembro de lhes ver aqueles restos de lama que, não sei de que maneira, se agarravam aos meus tornozelos todas as vezes que o dia era de chuva.

Molhada e enfiada naqueles trajes que a minha mãe insistia que eram os melhores – como camisolas de angorá – a adolescência era ainda mais estranha para alguém que, como eu, não tinha o tamanho adequado, nem a origem certa e, por mais que se esforçasse, não tinha atributos que pudessem ser apreciados na escola. A chuva tornava tudo ainda mais desconjuntado: eu, as minhas roupas e a minha timidez. Com sol e as roupas de verão parecia mais fácil.

Lembro-me de como essas manhãs se arrastavam quentes, a descer a subir as escadas dos alunos, para ficarmos todos, ali, junto ao bar dos Ilhéus, com a chuva a tamborilar por cima, na chapas que cobriam a sala de convívio. Eu consolava-me no cachorro quente com bastante manteiga e fazia por não dar na vista. A minha adolescência foi um bom treino de invisibilidade, de estar sem estar de facto.

Quando o autocarro me devolvia a casa, pouco antes das duas da tarde, eu respirava de alívio, subia a entrada, livrava-me da roupa esquisita e, depois, ao entardecer, abria o postigo da porta do corredor e ficava a ver a chuva, a cair forte no quintal, nas duas laranjeiras, no caminho, onde os carros cortavam pela água. E, ali, na minha porta, podia então apreciar o som da chuva.

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