Madrugada na Aldeia

Parece que no meu olfato, ainda pousa o cheiro característico da madrugada, de quando me levantava cedo e entrava verdura adentro nas minhas lides campestres, naquela pitoresca aldeia, situada entre o mar e a montanha de seu nome SANTANA.

Não há qualquer comparação, entre a pobre riqueza das vivências de hoje e a rica pobreza do viver em tempos de outrora.

Era aquele santuário da natureza, recheado de carências no essencial à sobrevivência humana, mas duma fertilidade invejável na pureza duma vivência sã, onde até o cantar do galo e as próprias galinhas, referenciavam o tempo, quando o relógio era raro na aldeia. As referências, deitar-se ou levantar-se com as galinhas, eram expressões indicativas de tempo.

-Hoje levantei-me cedo vizinha; olhe, levantei-me com as galinhas!

-Ó vizinha...eu levantei-me mais cedo ainda; tava começando o galo a cantar!

Apesar do peso do sono próprio da minha adolescência, de vez em quando eu acordava ao doce toque da alvorada, que nos brindava o galo, visto dormirmos quase a paredes meias.

Adivinhando que o romper da aurora se avizinhava, havia sempre um galo nas redondezas, que abria o alerta para a sua anunciação. Depois de bater fortemente as asas, dava o “mote”. Respondiam-lhe os seus vizinhos, cantando à vez passando por todos até voltar ao primeiro e sempre na mesma ordem, e assim sucessivamente. De vez em quando, sempre havia um galo que se enganava e cantava ao mesmo tempo que o seu precedente, ou roubava-lhe a vez.

Eu, no aconchego dos meus lençóis, seguia atentamente a ordem dos cantadores, a ouvir qual era o que se enganava a cantar fora de tempo, ou que se engasgava no cantar (por vezes o canto saia furado). Pelo sítio de onde saía a cantadela, eu sabia quem era o dono do artista.

Quase em simultâneo, a passarada associava-se a esta festa da natureza, com uma chilreada divina. Eu não estou a imaginar, que pintor algum, tenha reproduzido na tela uma cópia fiel daquele quadro magistral e, nem Beethoven alguma vez, ousasse compor para tão imaculada orquestra.

O melro preto parecia ser o maestro, pela forma como impunha o seu ritmo, entre compassos e pausas, (quando não cantava assobiava).

Após estes primeiros sinais da madrugada, quando começavam a desfazer-se as multicores do arrebol, que nos oferecia a aurora, ouvíamos o som do buzio que o homem da desnatadeira fazia entoar aldeia dentro, alertando os agricultores da abertura deste posto de desnatação do leite e estes, de pés descalços e de folhão na mão (bilha de folha), caminhavam apressadamente na companhia do seu cão rafeiro, para a ordenha das vacas.

Entretanto surgia o dourado dos primeiros raios do sol, que lentamente começam a espalhar a sua luz, quebrando o lusco-fusco daquela paz sagrada, refletindo as suas cores sobre as gotas de sereno pousadas nas ervas, dando-lhe o brilho das pérolas.

E assim, acordava uma aldeia.

Começava a azáfama do dia a dia, sem esquecer aquela palavra mágica que saltava de boca em boca, (hoje quase ignorada) ...BOM DIA, BOM DIA!