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O silêncio de Deus

Foi nos finais dos anos 90 do século passado que tomei conhecimento do romance “Silêncio” de Shusaku Endo. Na altura vivia em Macau e lecionava na Universidade de Macau e no Instituto Politécnico de Macau. Às quintas-feiras, ao fim da tarde, reuníamos um pequeno grupo de leigos católicos e refletíamos sobre os textos do evangelho do domingo seguinte.

Num destes encontros alguém abordou o sentido e a importância da leitura daquela obra para compreender melhor o modo e a forma de evangelização dos portugueses no Oriente, nomeadamente no Japão. Tentei comprar o livro imediatamente mas só consegui fazê-lo, em Lisboa, passados alguns dias. De regresso, no avião, fiz a primeira leitura desta obra de Endo e tentei perceber como o encontro do cristianismo com outras religiões se tinha processado no passado e como a questão da fé em confronto com a descrença (logo do martírio em relação à apostasia) e, por último, o enigma dos enigmas, que é o silêncio de Deus.

O motor da narrativa em o “Silêncio” é o tema da apostasia que trás agregadas questões fundamentais como a da experiência dilemática inerente ao acto de crer. “A fé é uma luta corpo a corpo com Deus, num despojamento sempre mais radical e aberto a uma misteriosa passagem em que o eu dá lugar ao tu, ao por ti, ao para ti. Mas a fé é uma travessia que se faz a tatear como se vivêssemos o invisível mas sem o reter ou possuir.”

De facto a fé é um teste interminável à confiança. Endo, porém, no seu livro, obriga-nos a perguntar: a apostasia da personagem central é uma verdadeira apostasia? O grande acto de amor – e por isso também de fé – é ou não salvar os outros? Jesus Cristo não é maior do que as suas imagens e representações? Como algures se diz no romance, “alguém pode dizer que os fracos não sofrem mais (por Deus) do que os fortes?” Tolentino de Mendonça responde a esta questão afirmando: “o mártir sofre a morte do corpo, o apostata sofre a morte da alma. Qual o martírio mais radical?”

Quando do lançamento do filme nos Estados Unidos voltei a ler o romance de Shusaku Endo. Longe de uma história de heroísmo estamos perante um exemplo de provação – muito mais do que de dúvida. Dir-se-ia que há uma revisitação do drama da negação de S. Pedro. No entanto, é muito mais do que isso, uma vez que a apostasia, tratada em diversos registos, baseia-se na relação paradoxal entre fé e caridade, entre o amor de Deus e o amor aos Outros.

O caso que serve de base ao romancista Shusako Endo (1923 – 1996) liga-se à apostasia do Padre Cristóvão Ferreira em 1633 – caso inédito até então. Perante as perseguições havia que resistir. Daí que os Jesuítas tenham assumido a exigência da conciliação cultural como nos ritos da China. E tudo começa com um dado dramático: “A notícia chegou à Igreja de Roma. Enviado ao Japão pela Companhia de Jesus, Cristóvão Ferreira, submetido à tortura da fossa em Nagasaki, apostara”.

O tema crucial do filme de Scorsese é o da barreira cultural entre uma religião estrangeira e a cultura japonesa. O “Silêncio” é um filme tão difícil como o romance de Endo, recebido com reticências pelos japoneses em 1966. O cristianismo nipónico é heterogéneo e surpreendente – os mártires coexistem com os cristãos escondidos, os que preferiram o testemunho público e os que mergulharam na sociedade, divididos entre as fidelidades do gesto e do princípio.

A dúvida liga-se ao remorso. E Cristo representado no fumie, a pequena placa usada para consumar a apostasia, diz: “podes pisar-me”. Afinal, o mistério do silêncio está no centro desta reflexão, como ausência de palavras, audição do universo e fidelidade íntima.

De facto, o padre Ferreira é obrigado a defrontar-se com as consequências de uma opção limite em que a fé pessoal está ligada ao destino de muitos cristãos japoneses condenados ao sacrifício supremo pelo qual ele se sente responsável. E, neste ponto, não pode deixar de se lembrar a meditação angustiosa sobre o porquê da missão de Judas. Porquê haver um apóstolo condenado à partida pelo facto de lhe caber a tarefa necessária de entregar o Mestre? Quantos dramas pessoais repetem esse exemplo evangélico? “Basta, Senhor, basta! É agora o momento de quebrares o silêncio. Já não te podes calar por mais tempo. Mostra que és a justiça, a bondade, o amor por excelência. Tens de dizer alguma coisa para que o mundo saiba que existes.” Esse silêncio pesado domina o drama de quem tem de escolher entre o amor e a morte, sem saber exatamente onde estão um e o outro. Mas, o verdadeiro problema não é o silêncio de Deus mas o ruido que reina no nosso interior.

O Cardeal Robert Sarah acaba de publicar um livro sobre este tema: “A força do silêncio contra a ditadura do barulho.” Cumprindo a sua missão, este livro constitui uma belíssima terapia para os males da sociedade contemporânea: “O Silêncio não é uma ausência. Pelo contrário, ele é a manifestação de uma presença. A mais intensa de todas as presenças. O descrédito criado sobre o silêncio na sociedade moderna é o sintoma de uma doença grave e inquietante. As verdadeiras questões da vida colocam-se no silêncio.”

Projetemos a nossa reflexão nas palavras do realizador Martin Scorsese e talvez encontremos muitas respostas para tantas interrogações – “Silêncio” é a história de um homem que aprende de forma dolorosa, que o amor de Deus é mais misterioso do que ele acreditava; que Ele dá ao Homem mais liberdade, na sua condução, do que nós supúnhamos; é que Ele está sempre presente... mesmo no seu Silêncio”.