Crónicas

Voa Ícaro, voa...

O que impede o senhor Jaquinzinho, desdentado, de largar a sua foice e bordão no poio, arranjar um voo caríssimo para Lisboa e dar um murro num balcão de uma das companhias aéreas? O certo é que tal como o senhor Jaquinzinho, o presidente da Câmara sentiu-se à vontade para o fazer. E esse à vontade só existiu graças à permissividade e perda de poder negocial de quem de direito. As fraquezas reveladas até aqui sobre os vários assuntos pendentes com a República, deram azo a que presidentes da câmara e a senhores Jaquinzinhos se sentissem confortáveis para intervir, mesmo sabendo que estavam a meter foice em seara alheia. Ícaro quis voar tão alto...

Por vezes, a vontade de desafiar os padrões, contornar as regras ou pura e simplesmente criar a sua própria lógica, soam mais alto do que a razoabilidade prática. A audácia faz parte de milhões de cenas que compõem a nossa História. A cobardia e o chico-espertismo também. Exemplos não faltam.

Se voltarmos aos bancos da escola, vamos certamente recordar aqueles que nos marcaram: há sempre um queixinhas que, sorrateiramente ou não, passa a vida a apontar o dedo e a se fazer amiguinho das professoras e das funcionárias. Há sempre um mauzão para bater, aterrorizar e ameaçar aqueles que são supostamente mais fracos, há sempre os meninos bonitinhos que são uns espertinhos que com a sua lábia e sorriso rasgado, tentam mostrar que são os melhores da turma. Quiçá da própria escola.

Depois há aqueles que ambicionam ser heróis e que decidem intervir, mesmo quando não são chamados. Uma vez conheci um desses supostos heróis. Bateu num miúdo que tinha dado uns pontapés num outro. O caso já estava a ser tratado pelo senhor Freitas. Um funcionário que com palavrinhas mansas estava a tentar chegar a um consenso.

O super-homem de palmo e meio, resolveu o problema da mesma maneira em que o encontrou. Não teve capacidade para aplicar as regras, respeitar a hierarquia e nem pensou sequer que não seria necessário aplicar a força para acabar com uma briga. Mas estamos a falar de crianças e há sempre muita esperança de que elas vão cumprir com sucesso as metas do longo e tortuoso caminho de construir os respetivos carácteres.

O certo é que estas personagens que, de uma forma ou outra, marcaram as nossas experiências, não fazem parte das doces e ternurentas recordações dos tempos da escola. Aliás, lembram-nos que a selva nos foi apresentada demasiado cedo.

Os queixinhas, bullies, amuados e espertinhos vão continuar a fazer parte das nossas vidas e há que ter o bom senso de saber lidar com eles. Há que saber, de igual modo, olhar para os que se consideram audazes e perceber o que os move. Só assim podem ser deslindadas as estratégias obscuras e em vez de nos deixarmos seduzir por palavrinhas mansas ou até murros na mesa e voz grossa, há que ir às origens e entender os porquês. Dá maçada, eu sei, mas é uma das formas mais eficazes de perceber o mundo em que vivemos e de entender certas e determinadas atitudes de gente que julga que tem as rédeas disto tudo nas mãos.

Ícaro voou demasiado alto, ofuscado pela vaidade que se transformou numa audácia demasiado perigosa. Ouviu os alertas e as súplicas de Dédalo, mas caiu literalmente para a morte devido à vaidade e a exagerada autoconfiança. Ícaro queria desafiar as lógicas, estabelecer recordes, mostrar a sua força. Exibir-se...

Ícaro esqueceu-se de perguntar, pesando os prós e os contras, se tinha capacidade para voar tão alto sem sofrer consequências. Se tinha legitimidade para o fazer.

Por vaidade, caiu Satanás e por vaidade a cera das asas de Ícaro derreteram, atirando-o para a morte.

Saber quais são os nossos próprios limites, é um exercício doloroso que nos conduz até às partes mais obscuras da nossa essência, da nossa personalidade.

A história de Ícaro adapta-se a diversos episódios do nosso quotidiano. Tivemos um presidente de uma Câmara Municipal que ultrapassou todos os mecanismos existentes, passou por cima de instituições, em prol de um bem maior. Um «super-herói» que, a exemplo do tal miúdo da escola, decidiu resolver um problema criando um problema. Foi legítimo?

Cada um em consciência deve formar a sua própria opinião a respeito do assunto, mas se as pessoas com responsabilidades não respeitam as instituições democraticamente instituídas, como podemos confiar que afinal vale tudo e que os fins justificam os meios?

O que impede o senhor Jaquinzinho, desdentado, de largar a sua foice e bordão no poio, arranjar um voo caríssimo para Lisboa e dar um murro num balcão de uma das companhias aéreas? O certo é que tal como o senhor Jaquinzinho, o presidente da Câmara sentiu-se à vontade para o fazer. E esse à vontade só existiu graças à permissividade e perda de poder negocial de quem de direito. As fraquezas reveladas até aqui sobre os vários assuntos pendentes com a República, deram azo a que presidentes da câmara e a senhores Jaquinzinhos se sentissem confortáveis para intervir, mesmo sabendo que estavam a meter foice em seara alheia.

Ícaro quis voar tão alto...

Ícaro audaz, sonhador, imprudente que não calculou o seu limite.

Afogou-se algures no mar Egeu, levando para as profundezas das águas a vaidade que o matou. Em sua homenagem, atribuíram o nome de Icária à ilha que se situava nas proximidades deste trágico, mas esperado, desfecho.

É isso... Ícaro também tem uma ilha. Só que esta acabou por ser conhecida pela longevidade dos seus habitantes e não pela morte súbita de ideias, projetos e aspirações que, de repente, podem ser engolidos pelo mesmo pecado que fez cair Satanás e o mitológico filho de Dédalo.