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Certificados de bom comportamento

Agora que o País recebeu novo atestado de bom comportamento, há duas coisas que convém recordar

Numa das suas célebres intervenções na Câmara dos Comuns, Winston Churchill comentou do seguinte modo o acordo de Munique, assinado a 30 de Setembro de 1938, que deixou a Adolf Hitler as mãos livres para ocupar a Checoslováquia: fomos abordados por um salteador que nos exigiu uma libra; quando lhe demos uma libra, exigiu outra; por fim contentou-se com dezanove xelins, e mais um xelim em certificados de bom comportamento.

Agora que Portugal recebeu um novo atestado de bom comportamento, há duas coisas que convém recordar.

A primeira, é que já tivemos um atestado de “bom aluno da Europa”, mas disso não tirámos grande benefício, e nem sequer aprendemos com a lição. Seguimos antes o exemplo de D. João V, esbanjámos ou ignorámos os recursos que nos foram facultados, e construímos dez estádios capazes de, no conjunto, ultrapassar em majestade o Convento de Mafra. Com a diferença de o Convento sempre teve ocupação, e parte desses estádios servir hoje para o cultivo da Musca Domestica Linnaeus, nome científico da vulgar mosca.

A segunda, é que negociar com alguém de pistola apontada é complicado para quem está só, desarmado, e é fraco. Dado que os salteadores por aí abundam só não disparam a pistola quando isso não lhes convém, a coisa é complicada.

Ainda que os números sejam favoráveis (com sensatos alertas contra a euforia), que os indicadores sejam positivos, que o investimento e as exportações aumentem, que as comparações com outros países nos sejam favoráveis, isso não comoveu as agências de rating. Mesmo a atribuição do cognome de “Ronaldo das Finanças “ ao respetivo Ministro, com a nebulosa promessa de voos mais altos, demoveu os DDT (Donos Disto Tudo).

(a propósito: na mesma linha, porque não o de “Leonardo Jardim do Governo” para António Costa?)

Portanto, ficámos com um xelim, e as agências de rating com uma libra e dezanove xelins. O que lhes permite continuar a manter os juros altos, a (fazer) negociar títulos a preços convenientes, enfim, manter tudo como se a recuperação da economia e a estabilização financeira, feitas à custa do nosso desmesurado esforço, não valesse nada.

E de fato, para eles, não vale, como não vale o xelim de bom comportamento. O que vale é poder continuar a manipular as cotações a seu bel-prazer, com a impunidade de quem dispõe de uma arma carregada contra um transeunte indefeso.

Remédio? Talvez a tal agência de cotações europeia, várias vezes anunciada, mas sempre adiada. Auri sacra fames, conforme citava o latinista distinto do navio pirata do Asterix. Pois é melhor rir que levar estas coisas demasiado a sério. Bem disse Henry Ford que, se o público soubesse como funcionava o sistema financeiro, haveria de imediato uma revolução em Nova Iorque.

Voltando a Asterix, bem pode dizer-se que “estes lusitanos são loucos”. Para um observador externo, ver os neo-liberais dizer que o Governo devia ter feito mais no investimento, e os próceres da Geringonça enaltecer o sector privado, pode parecer estranho.

Mas pode ser mais uma manifestação da singularidade nacional, e das vias originais tão genuinamente nossas.

Esperemos que se trate da tão necessária convergência em torno dos nossos objetivos estratégicos, por forma a valorizar o xelim que nos foi atribuído, e tentar recuperar uma libra e dezanove xelins que nos devem.