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Crónicas

O Laranjal numa caixa de papelão

Às vezes, pesava a falta do mar e do ar morno da cidade e ser universitária também era carregar na mala um pedaço de casa

Quando as primeiras chuvas se abateram sobre o quintal, as minhas cores estavam melhores e a minha mãe não se cansava de repetir, que agora sim, voltara a ser a Marta e não aquela jovem pálida que o avião lhe devolvera no fim do primeiro ano de faculdade. Acho que se convenceu que o sol de Lisboa não era como o nosso, não devia aquecer, nem bronzear. E, certamente, não seria a única coisa estranha desse lugar que, além de frio, era habitado por pessoas que nunca tinham comido anonas, maracujás e abacates e também não sabiam o que era uma pimpinela.

Facto que divertia muito a minha mãe e as minhas tias, habituadas a conviver com latadas, árvores e jardins exóticos, a quem era difícil imaginar um mundo sem aquele calor morno do meio-dia ou a humidade que colava as pernas ao banco do autocarro e aumentava nos dias chuva, sobretudo aqueles do princípio de Setembro, quentes e abafados. Não seria o melhor clima, mas era tudo o que conheciam e faltava-lhes entusiasmo para procurar diferente. Aquelas casas, aqueles jardins e aquela fazenda eram a vida das mulheres de meia idade com quem cresci.

E tinham orgulho nisso, eram filhas e netas de agricultores, pessoas de trabalho e proprietários de terras, o que não dava para ser rico, mas havia de dar para fazer boa figura no regresso das férias e para levar às amigas e amigos, a todos os que, naquelas primeiras férias, escreveram cartas e postais. A minha mãe divertiu-se a tirar da caixa do correio envelopes de uma Teresa, de uma Mónica, de uma Rosa, de uma Alexandra, de uma Lurdes, de uma Sandra, de uma avalanche de nomes que, sem se perceber bem, passaram a fazer parte da vida na casa do Laranjal.

Quase todas as semanas havia resposta a uma carta, uma longa e extensa prosa escrita em papel e a dar conta de peripécias, de viagens ao Algarve, de ida à terra dos pais, de namoricos ou reflexões mais profundas sobre livros e filmes que, entretanto, tínhamos visto. A conversa do bar da faculdade passou para as cartas e para os correios e isso impressionou a minha mãe e as minhas tias. Podia lá ser? Aquela seria a mesma Marta, a que elas conheciam e a quem repreendiam por não saber fazer uma conversa? Lisboa e aquelas pessoas tinham mudado a rapariga insegura e tímida que iria sair dali e daquelas férias como uma jovem universitária.

Foram pequenos detalhes, uns óculos antigos reciclados em óculos de sol; um colete herdado do meu irmão, mais uns sapatos novos e umas calças de ganga que fomos comprar, a minha mãe e eu. A dona Celina a parecer muito maior do que o seu metro e meio de altura, a repetir que a ‘pequena está na universidade, em Lisboa, precisa de roupa, não vai ficar diferente das outras”. O que não era fácil, eu era exótica como todos os madeirenses em 1990, gente das ilhas, com um falar diferente e saudades de coisas estranhas como goiabas e pitangas. Às vezes, pesava a falta do mar e do ar morno da cidade e ser universitária também era carregar na mala um pedaço de casa.

E, depois desse Verão, todas as férias da faculdade passaram a ser um ritual para as minhas tias e para a minha mãe. O mais importante era encontrar umas caixas de papelão onde arrumavam os bolos de mel, as broas, o bolo da minha tia Alice, as anonas, as bananas, os abacates, o doce de ameixa e de amora e tudo o que tivesse o sabor de casa. Os pacotes que despachei para o porão incluíram quase tudo, o que podia partir como o licor de tangerina da minha tia Conceição ia dentro de um saco que eu metia debaixo do banco da frente. A TAP fechava os olhos ao excesso de bagagem, fosse para emigrantes ou estudantes, aquilo não era peso, era saudade.

Em Lisboa, nos dias maus, tudo era mais do que comida, era quase como ter a mão da minha mãe a puxar-me o lençol antes de adormecer. E servia à partilha, que, nesse tempo, nenhum estudante universitário sobreviveria sem dividir com os amigos o bom e o mau. Eu partilhei bolos, anonas, abacates, o que vinha da casa do Laranjal e cabia numa caixa de papelão.