Férias
Os únicos que tinham férias éramos nós, o meu irmão e eu. E as férias do Duarte incluíam acampamentos na serra, saídas à noite e praia; as minhas ficavam-se pela praia, um filme ou outro no cinema e um refresco na Marina
Os meses do calor traziam muitas coisas como dias grandes e noites quentes, mas as férias, esse direito a não trabalhar, não chegava a todos aqueles homens que, de Inverno e de Verão, subiam para cima da carroçaria de uma furgoneta e iam ganhar a vida onde houvesse obras.
O meu pai era um desses homens, só não ia sentado nos bancos de madeira por ser mestre. As diferenças acabavam aí: a bolsa levava a roupa de trabalho, o almoço e café numa garrafa de calor; o corpo levava o cansaço do dia anterior e a vontade de ganhar dinheiro. O salário chegava todas as semanas, às sextas, o dia em que fazia uma paragem para aliviar aquela vida com uns copos de vinho seco.
E era assim todos os dias, de Janeiro a Dezembro, às vezes as semanas não tinham domingos, nem sábados e havia trabalho para feriados. A única folga era ao domingo à tarde, quando não havia extras, no sofá da sala da televisão ou no quintal, na cadeira de lona e à sombra da laranjeira. Quando começava a bola, a telefonia ficava ligada no relato, mas o pai nem acordava com o locutor a gritar golo, mesmo que fosse do Marítimo ou do Sporting. À tardinha juntava-se aos homens dali, da vizinhança, na garagem do meu tio Humberto para jogar cassino, sentado em cima de uma grade de Coral.
Só a chuva o deixava em casa e, nesses dias, metia-se na loja e falava pouco. Sem trabalho não havia salário e nada o preocupava mais do que isso. Quando o tempo levantava, a vida seguia o caminho de sempre: sair cedo, com a bolsa a tiracolo, a correr para a furgoneta e a deixar para trás uma daquelas discussões em que os meus pais se envolviam com frequência. O meu pai era um homem organizado, cumpria horários; a minha mãe não, era o caos e nem à missa chegava a horas. A rotina mantinha-se assim, um mês após o outro, o frio a dar lugar ao calor sem que nada se alterasse ali, naquela casa, na curva da estrada, em que o pai era pedreiro, a mãe bordadeira e os filhos eram os únicos que tinham férias de Verão.
A minha mãe só tirava folga ao domingo à tarde, quando penteava o cabelo e mudava de roupa para ir a casa das minhas tias conversar com as irmãs e as primas. De segunda à sexta bordava quase parar, ao sábado arrumava a casa e ao domingo de manhã ia depressa à missa e vinha fazer um almoço de encher as medidas, com primeiro e segundo prato, sobremesa e um bolo de fatia para comer ao lanche e servir de jantar. Às quartas-feiras ia levar bordados à casa, passava no supermercado e trazia quatro iogurtes de pedaços, fiambre e fruta, aqueles pequenos nadas que mudavam tudo naquela nossa existência de cachos de banana pendurados na cozinha velha e taças de ameixas em cima do frigorífico.
Os únicos que tinham férias éramos nós, o meu irmão e eu. E as férias do Duarte incluíam acampamentos na serra, saídas à noite e praia; as minhas ficavam-se pela praia, um filme ou outro no cinema e um refresco na Marina. As aventuras de Verão ia ouvi-las depois, no regresso das aulas e da boca das minhas colegas, as que tinham irmãs mais velhas ou mães mais tolerantes do que a minha. A dona Celina podia ser caótica em casa, mas não permitia liberdades, que aos 16 podia ser a idade de ir ao banho sozinha, mas era cedo para ir à discoteca ou para acampar com amigos.
Embora não fossem perfeitas, sempre eram férias, não havia aulas, nem despertador a tocar e também não havia viagens a Canárias ou a outro lugar qualquer. Foi assim na minha infância, na adolescência, nos meus anos de faculdade. A minha mãe morreu sem saber o que isso era; o meu pai viveu para ter esse prazer depois dos 60 anos quando foi com o meu tio Humberto e os homens da vizinhança num passeio para ver a EXPO 98, o norte de Portugal e Fátima. E voltou a fazer uma excursão uns anos depois. E dessa vez com passagem pelo Corte Inglés, as lojas impressionaram tanto que, quando o fui visitar, deu-me 100 euros e desculpou-se. “Eu sei que devia ter trazido uma lembrança, tenho a certeza que terias gostado daquelas lojas, mas não sabia o que escolher”.