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Fact Check Madeira

D. Tolentino é o primeiro cardeal madeirense nos dois últimos séculos?

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Foi em Outubro de 2019 que o nome de D. José Tolentino Mendonça encheu manchetes, púlpitos e salas de aula. Poeta, teólogo, académico, homem da cultura e da fé, a sua nomeação como cardeal pelo Papa Francisco foi celebrada em todo o país, e com particular orgulho na Madeira, de onde é natural. Em Machico multiplicaram-se mensagens de felicitações e ouviu-se, um pouco por todo o lado, uma afirmação carregada de entusiasmo: “É o primeiro madeirense na história da Igreja a tornar-se cardeal”. Mas esta afirmação, repetida vezes sem conta, tanto em discursos institucionais como em jornais e redes sociais, deixou dúvidas a alguns. Entre eles, R.F., leitor atento, que lançou a questão: será mesmo o primeiro?

A pergunta não é trivial. Toca num dos pilares da memória dos madeirenses e da representação regional nas mais altas esferas da Igreja Católica. A Madeira tem uma longa tradição religiosa, deu ao país bispos, missionários, figuras de grande valor moral e intelectual. Mas quantos, afinal, chegaram ao mais alto colégio da Igreja, o colégio cardinalício?

A resposta parece simples, mas obriga a recuar quase um século. Porque, na verdade, há um nome que o tempo quase apagou, mas que não se apagou da História. Um nome que antecede o de Tolentino, embora hoje raramente seja mencionado.

Antes de desvendarmos esse nome, convém lembrar quem é José Tolentino Mendonça. Nascido em 1965, em Machico, destacou-se desde jovem como um pensador subtil, sensível e profundamente humanista. Foi professor, vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, pregador de retiros no Vaticano, arquivista da Santa Sé, bibliotecário, e desde 2022 lidera um dos mais importantes organismos do Vaticano, o Dicastério para a Cultura e Educação. A sua criação como cardeal foi vista não só como reconhecimento da sua trajectória, mas também como afirmação do papel renovador da Igreja portuguesa no mundo.

É compreensível, portanto, que muitos tenham visto na sua nomeação um marco histórico para a Madeira. Mas foi mesmo inédito?

É aqui que a viagem pela história nos leva a um outro canto da ilha. Freguesia de São Jorge, concelho de Santana, ano de 1889. Aí nasce Teodósio Clemente de Gouveia. Filho de uma família modesta, seguiu o caminho da vocação eclesiástica com rigor e dedicação. Estudou em Braga, Paris, Roma e Friburgo. Em 1911 foi ordenado sacerdote. Anos depois partiu para Moçambique, onde viria a construir uma notável carreira missionária e episcopal.

O seu percurso, embora discreto aos olhos do continente, foi grandioso. Em 1940 foi nomeado arcebispo de Lourenço Marques, capital da então colónia portuguesa de Moçambique. E a 18 de Fevereiro de 1946, o Papa Pio XII elevou-o ao cardinalato. A cerimónia teve lugar em Roma. O novo cardeal ficou com o título de São Pedro em Montório. Era, à data, o primeiro cardeal português após a implantação da República, o primeiro cardeal residente em África e... sim, o primeiro madeirense a ser nomeado cardeal.

Teodósio de Gouveia faleceu em 1962, antes do Concílio Vaticano II. A sua acção pastoral em África, o seu papel diplomático junto do Vaticano e o contexto político em que viveu fizeram dele uma figura relevante na Igreja do século XX. Mas o tempo, a distância e a ausência de memória institucional acabaram por relegá-lo para um plano secundário, mas em 1958, existem registos que terá participado no conclave que elegeu o Papa João XXIII, mas curiosamente pertencente à igreja de Moçambique, cardeal de Lourenço Marques, antiga capital daquele país.

Dom Teodósio Clemente de Gouveia veio a entrar para o seminário da Encarnação do Funchal em 1905, continuou os seus estudos em Paris, sendo ordenado diácono em 1918 e, sacerdote, no ano seguinte. Passou então por várias universidades europeias, regressando ao Funchal em 1922, desempenhando funções no seminário, onde foi reitor, passando depois a reitor do colégio português de Santo António, em Roma. Eleito em 1935 bispo de Leuce, foi apresentado como prelado para Lourenço Marques, sendo elevado a arcebispo em 1941, tendo sido o primeiro cardeal residente em África na época moderna.

Em Santana existe um busto em homenagem à sua figura, efectuada em 1967. O município é proprietário da peça de autoria do mestre Anjos Teixeira.

É esse silêncio que explica a actual confusão. Quando em 2019 D. Tolentino Mendonça foi nomeado cardeal, poucos, mesmo entre os estudiosos da Igreja, recordaram D. Teodósio. E assim se instalou a ideia de que era a primeira vez que um madeirense chegava a cardeal. O entusiasmo não foi despropositado, mas foi historicamente impreciso.

D. José Tolentino Mendonça é, de facto, o primeiro no século XXI. É o primeiro em muitas outras coisas: na influência cultural, na presença mediática, na linguagem renovada que traz à Igreja. Mas não é o primeiro da Madeira a envergar a púrpura cardinalícia.

A verificação deste facto passa por fontes oficiais, como o Anuário Pontifício, os arquivos da Santa Sé, as páginas da Diocese de Maputo e obras académicas. Todas confirmam: D. Teodósio nasceu na Madeira, foi cardeal em vida, e precede D. Tolentino em mais de 70 anos.

Ambos representam momentos distintos, mas igualmente marcantes. A história não os opõe. Complementa-os. Um foi pioneiro em África, outro é símbolo do pensamento cristão contemporâneo. Um é o passado esquecido, o outro é o presente brilhante. E juntos, compõem o verdadeiro orgulho madeirense.

Em jeito de conclusão, D. José Tolentino Mendonça não é o primeiro cardeal madeirense. É o segundo, sucedendo a D. Teodósio de Gouveia, nomeado cardeal em 1946.

D. Tolentino é o primeiro cardeal madeirense nos dois últimos séculos?