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Fact Check Madeira

Será que a Madeira está a "abandonar" o Euro e a optar pela Bitcoin?

A imagem de apresentação do vídeo de Joe Nakamoto.
A imagem de apresentação do vídeo de Joe Nakamoto.

Num vídeo publicado há duas semanas no Youtube e que nos últimos dias tem sido amplamente divulgado nas redes sociais, a Madeira é apresentada como a “ilha da União Europeia que está a abandonar o Euro pela Bitcoin”, dando a entender que no nosso arquipélago se está a assistir a uma troca da moeda predominante nas transacções quotidianas. Será que esta ideia corresponde à realidade?

O Euro, com o símbolo €, é a moeda oficial de Portugal e de 19 outros países da União Europeia, conhecidos colectivamente como a Zona Euro. É a segunda moeda mais utilizada no mundo, tanto em termos de transacções internacionais como de reservas cambiais, a seguir ao dólar norte-americano. Foi introduzido como moeda electrónica em transacções bancárias e financeiras em 1999 e começou a circular na forma de notas e moedas no início de 2002. Como moeda de curso legal, as pessoas e entidades que vendem bens ou serviços têm obrigatoriamente de a aceitar como meio de pagamento pelo seu valor nominal (valor inscrito na moeda). Esta moeda é gerida pelo Banco Central Europeu (BCE).

Já a Bitcoin (BTC) é uma moeda digital descentralizada que permite transferências de valor pela internet sem necessidade de intermediários, como bancos ou governos. Foi criada em 2008 por uma entidade sob o pseudónimo Satoshi Nakamoto, e entrou em funcionamento em 2009. Usa tecnologia blockchain para registar todas as transacções de forma pública e imutável, sendo que estas não exigem identidade pessoal. Em Portugal, a Bitcoin não é considerada uma moeda oficial (como o Euro), mas é legal comprar, vender, manter e utilizar. Pode ser usada como forma de pagamento entre pessoas e entidades privadas, mediante concordância dos intervenientes. Há caixas automáticas (tipo multibanco) de Bitcoin disponíveis em cidades como Lisboa, Porto e Braga. A Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e o Banco de Portugal não reconhecem a Bitcoin como moeda ou instrumento financeiro. No entanto, as empresas que prestam serviços com criptomoedas (corretoras, exchanges, carteiras digitais, etc.) devem estar registadas no Banco de Portugal. É considerada um activo digital ou bem imaterial, e não moeda. Como não é moeda de curso legal, os comerciantes não são obrigados a aceitar Bitcoin como forma de pagamento.

O vídeo que anuncia que na Madeira a Bitcoin está a substituir o Euro é protagonizado por um produtor de conteúdos digitais britânico que utiliza o pseudónimo de Joe Nakamoto. Há cerca de três anos que tem um canal no Youtube que promove a mencionada moeda digital. O vídeo mostra uma viagem à Madeira, que é apresentada como “a ilha europeia da Bitcoin” e “um dos locais mais amigos do Bitcoin na Europa e talvez até no Mundo”, onde “se pode comprar de tudo com Bitcoin”, desde refeições, especiarias, tratamentos de crioterapia e até carros. O influenciador digital faz um percurso por vários estabelecimentos comerciais da Região que aceitam a criptomoeda e explica como é que a nossa Região se tornou num pólo de entusiastas da Bitcoin. Entrevista e segue o quotidiano de André Loja, fundador do movimento ‘FreeMadeira’ e empresário que promove a utilização da moeda digital. Explica que há poucos anos era o único entusiasta na Madeira mas que agora há mais de 140 comerciantes que aceitam esta nova forma de pagamento. São avançados dois factores que ajudaram a difundir as criptomoedas na Madeira: a promoção feita pelo presidente Miguel Albuquerque e a presença de muitos nómadas digitais na ilha.

Um mapa actualizado de utilizadores de Bitcoin indica que, hoje, 146 estabelecimentos e prestadores de serviços da Madeira aceitam esta moeda digital como forma de pagamento. Neste conjunto, há desde empresas de aluguer de carros até pastelarias e restaurantes, passando por empresas de informáticas, barbearias e farmácias. O número de aderentes na Região é significativo, sobretudo por ser quase equivalente ao existente em todo o território de Portugal continental (149). Nos Açores apenas dois estabelecimentos comerciais aceitam a Bitcoin e nas Canárias 28.

No entanto, há que ter em conta a real escala do fenómeno. Os últimos dados oficiais disponíveis indicam que na Madeira existem 12.006 sociedades (informação da Direcção Regional de Estatística referente ao ano de 2023), o que mostra que as 146 empresas que aceitam a Bitcoin representam uma ínfima parte do tecido empresarial do arquipélago. Para sermos mais exactos, somente 1,2 por cento das empresas madeirenses ‘trabalham’ com aquela moeda.

No seu vídeo, Joe Nakamoto dá a entender que a economia funciona ao contrário, ou seja, que a Bitcoin é, afinal, a moeda predominante. Reconhece que “há certos locais na ilha que ainda não aceitam a Bitcoin” e alerta os viajantes que “ainda poderão de precisar de algum dinheiro quando vieram cá, nomeadamente para parques de estacionamento e para algumas lojas tradicionais”.

O divulgador digital reproduz o testemunho de vários empresários e operadores económicos madeirenses que dizem aceitar criptomoedas, mas nenhum declarou que pretendia “abandonar o Euro pela Bitcoin”.

Por isso, o título do vídeo revela-se claramente sensacionalista, pois em 20 minutos de duração não é avançado nem um elemento concreto que indique que está em curso uma substituição da moeda oficial do país (Euro) pela moeda digital Bitcoin. Aliás, muitos dos comentários de reacção a esta publicação no Youtube alertam para a conclusão fantasiosa de Joe Nakamoto. “Em 1.000 lugares, talvez um aceite Bitcoin”, refere uma das pessoas que reagem. “Quantas empresas existem na Madeira? Este vídeo é realmente enganador e apresenta uma narrativa extremamente tendenciosa... Sei que funciona para o público aficcionado pelas criptomoedas, mas não representa a realidade da região. Divirta-se com o seu mundo imaginário!”, lê-se noutro comentário.

A Madeira é a “ilha da União Europeia que está a abandonar o Euro pela Bitcoin” - Título de vídeo publicado no Youtube