O sótão
A Amadora, com os comboios a abarrotar e a rotina dos subúrbios, acolheu-me com a indiferença dos lugares onde todas as pessoas têm a cabeça preenchida com as alegrias e as aflições das suas vidas. E por isso mesmo não tinha espaço, nem tempo para olhar para a miúda de óculos sentada no banco ao lado. De cara virada para a janela, os livros em cima dos joelhos e a bolsa muito perto do corpo por causa do medo dos ladrões, eu contava as estações e apeadeiros da linha de Sintra e fixava detalhes, os nomes de lojas e as cores dos prédios.
O sótão, o mais barato que encontrei naquela grande Lisboa de 1990, não era perto da faculdade e, todos os dias, depois de 20 minutos a pé por um emaranhado de ruas e prédios, lutava por um lugar no comboio para o Rossio antes de seguir a corrente que, como eu, descia para o metro e voltava a apertar-se dentro da carruagem. As outras pessoas conversavam, combinavam encontros e jantares, partilhavam preocupações e desabafos e não fazia diferença que se ouvisse. As histórias desapareciam com elas assim que a porta as despejava na plataforma de uma estação.
Os amores não correspondidos, as traições, as maldades familiares e os desentendimentos nos escritórios, todas as histórias que ouvia naquela viagem de 20 minutos acompanhavam-me ainda durante o caminho até à faculdade, sobretudo naqueles primeiros meses quando, de uma certa maneira, a vida dos outros davam a sensação de não estar só. Aquelas pessoas a sair e a entrar no metro, a cruzar a rua no semáforo, sofriam, ficavam felizes e tristes, não eram sombras ou figurantes, mas gente de carne e osso com as suas circunstâncias.
E eram diferentes das minhas que, por essa altura, procurava fazer amigos e habituar-me a viver longe de casa. Ali, no comboio de volta ao sótão, eu fazia força para não adormecer, não fosse o sono deixar-me noutro lugar, já de noite e entre desconhecidos cheios de pressa. E tinha de me aventurar pelo supermercado, fazer compras além de chocolates e batatas fritas para depois enfrentar o serão sem o meu pai a dormir no sofá e a minha mãe a bordar na outra ponta. Havia uma televisão portátil no chão da alcatifa, mesmo em frente ao armário onde guardava os meus casacos. Na mesa que servia para jantar e estudar, um vaso com uma planta ligava-me ao jardim do Laranjal.
Foi no vazio dessas noites que passei os momentos mais difíceis, que senti que me fugia a coragem para voltar a fazer tudo igual no dia seguinte e no dia depois desse. A solidão, que eu não sabia o que era aos 19 anos, ameaçou soterrar-me, estive a milímetros de voltar a arrumar tudo dentro da mala com os cantos esfolados da minha tia Conceição e a riscar Lisboa e o curso dos planos. Quando penso no que me fez ficar, lembro-me sempre dos dias de calor em Maio, já depois das primeiras férias no Funchal. Não sei se foram as bancas de pêssegos à saída do metro ou se foi da feira do livro ou dos dias grandes.
Ou se foi por isso que, na faculdade, nos deixamos ficar mais tempo a conversar e das conversas saíram ideias para ir ao cinema e jantar. De repente, estava a meio de um grupo de rapazes e raparigas de 19 anos, a falar de cinema, de livros, de política, a trocar apontamentos e fotocópias e prestes a colocar aquelas pessoas no centro da minha vida, a torná-los amigos que são como família. Eu deixei o sótão da Amadora no segundo ano da faculdade, passei pela experiência de viver num quarto até assentar num apartamento no bairro de Alvalade, mas já não estava só, nem era apenas uma miúda de óculos a dividir o banco na carruagem, era a Marta, tinha um sotaque esquisito e era da Madeira. E isso era muito naquela cidade de desconhecidos.