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Crónicas

O rapaz da bicicleta que distribui música

No meu bairro há um rapaz que gosta de passear de bicicleta, com um rádio antigo atado na parte detrás, envolto em cordas e com uma pequena bandeira do Benfica hasteada. Ninguém fica indiferente à sua passagem, não que ele se meta com alguém mas a música é bem audível e faz com que todos os olhares lhe passem por cima nem que seja por uns segundos. Há quem olhe com estupefacção, outros com desprezo, quem se ria e se divirta, quem sorria e acene. E ele lá vai com uma certa indiferença, como se estivesse a desempenhar um papel ou como se nada ali parecesse estranho. Penso que faz os seus dias como todos nós, simplesmente gosta de circular com o som bem alto, numa pasteleira antiga e já lhe é normal que seja o centro das atenções. Nunca falei com ele. Não sei o que pensa ou porque o faz. Há quem diga que tem um pequeno distúrbio mental, outros que é só excêntrico e sempre foi. Vive na minha rua e em dias de jogo, de estores semi abertos, vão-se ouvindo os cânticos do seu clube, o hino de Luiz Piçarra, com um cachecol estendido a toda a largura da janela. Também nesses momentos os sons chegam para a rua toda e para que o oiçam sem perceberem muito bem o que se está a passar.

Acredito que o faça porque se sente bem assim. Porque se anima e se sente valorizado ou conhecido ou tão só porque gosta do apetrecho que arranjou para adornar o seu veículo. De quando em vez, como na última semana, vejo uns mal humorados e carrancudos a mandar umas bocas e a gozar, chamando-lhe deficiente, anormal e outras coisas mais. Ele lá segue, impávido e sereno como se nada fosse com ele. E de facto não é. Esses impropérios de quem está de mal com a vida são muito mais sobre eles próprios do que sobre a pessoa. Muitas vezes transportamos estupidamente para os outros, as nossas próprias frustrações, as desilusões ou fases menos boas. Somos muito duros com quem não tem culpa talvez com o intuito de nos sentirmos um pouco melhor. Dessa forma acabamos por ser injustos e corrosivos destruindo egos e a felicidade de quem nada fez para construir em nós tais sentimentos.

Lembro-me que em plena Avenida da República de Lisboa, durante anos, na Praça do Saldanha, existia um homem alto e magro, sempre vestido de preto que ficava horas parado a dizer adeus aos carros que passavam. Ficou uma figura emblemática da cidade e não havia quem não o conhecesse. Também ele era alvo de troça mas também de muitos sorrisos e simpatias. Era inevitável para quem passava, ficar indiferente. Esse homem morreu e houve muitos que o recordaram com saudade e nostalgia daquele momento que de alguma forma mexia com o nosso dia. Neste caso não é diferente. Cada vez que oiço a música ao longe e o vejo a aproximar sinto que o bairro respira algum tipo de magia no ar. De que ainda existem pessoas que seguem na sua caminhada e que pouco se importam com o que pensam delas. Dos que acabam por empenhar algum tipo de alma e de pureza no meio de tantas fake news, vidas plásticas e encenadas.

Nem sempre o que é diferente de nós nos faz mal ou nos tem que incomodar. Temos muito esta mania de catalogar as pessoas, de as colocar em caixinhas cheias de rótulos e ideias pré-concebidas. Esquecemo-nos que do outro lado, provavelmente, só está alguém a tentar ser feliz, à sua maneira, tal como nós. Que não têm que ser os nossos padrões, os únicos a prevalecer e que devemos respeitar as diferentes formas de estar, de sorrir e de sermos quem somos. Por isso prefiro sempre os frontais e transparentes aos que se escondem atrás do anonimato para ofender e julgar.