A preto e branco
Quando o meu pai chegou a casa com uma televisão a preto e branco a ira da minha mãe libertou-se e soltou um rugido que passou da cozinha para o quarto de jantar e foi dar ao quintal, onde eu, ainda sem idade para ajudar, deambulava por entre panos de limpeza, alguidares e vassouras espalhados na desordem dos sábados. A minha mãe reagia à aflição do dinheiro, ao facto da casa não ter lugar para aquela Philips de 51 polegadas e juntava o desagrado pelos copos que o meu pai trazia da viagem à cidade.
A briga que se seguiu não foi suficiente para devolver o aparelho à loja, mas eu cheguei a pensar que isso ia acontecer. Não fosse a determinação do meu pai e talvez tivesse continuado a ver os desenhos animados e os filmes ao domingo à tarde em casa da minha tia Alice. No fim, arrumou-a no canto do quarto de engomar, comprou uma antena exterior e a minha mãe deixou de saber o que era viver sem ver o telejornal, os episódios da Gabriela e o concurso da Visita da Cornélia. E seguir estes programas era tornar-se espectador, era tomar parte dessa irmandade que nos ligava ao mundo.
A televisão trouxe as desventuras do Marco, de macaco em cima do ombro, atrás da mãe pela Argentina, os desastres portugueses na Eurovisão, a revolução iraniana, as telenovelas brasileiras, os anúncios do Tokalon e da Sumol e deixou-nos órfãos de cada vez que a rede eléctrica foi abaixo e nos fez perder um filme, um episódio do Espaço 1999. No escuro, iluminados pelas velas ou pelo candeeiro a petróleo, a esperança era que o corte fosse geral, mas a minha mãe dizia sempre que ali, naquela curva, ficava o fim do mundo e por isso era melhor não contar com o episódio da telenovela.
O fim do mundo era a maneira de dizer que o Laranjal era periferia, um arrabalde onde viviam pessoas normais, gente de trabalho, sem muito dinheiro ou poder. O caminho não tinha iluminação pública, não havia cimento no beco que ia dar a igreja e, de todas as vezes que a luz ia abaixo, era o lugar onde se ligava por último. Na escola, por causa do telhado e da chuva, os professores davam aulas em três turnos sem intervalo numa sala no andar de cima da venda. E a maioria de nós não sabia como era um elevador, nem sabia falar ao telefone.
O telefone era daqueles pretos, só havia nas mercearias e, quando era preciso dar um recado, as pessoas gritavam com medo que não as ouvissem do outro lado da linha. Quanto aos elevadores, as minhas tias e a minha mãe nem se atreviam a entrar num e, por isso, sempre que íamos visitar alguém ao hospital - fosse em que andar fosse - íamos pelas escadas. Também não sabíamos como era um avião por dentro. A minha mãe dizia que lhe fazia lembrar um atum grande, mas o meu irmão e eu estávamos fascinados com a magia de voar e levar as pessoas de um lado para outro por cima do mar e a furar as nuvens.
E isso era tão extraordinário como a televisão, aquela maravilha que levava as imagens a todos os aparelhos, a todas as casas e era só preciso ligar o botão. Ou quase que, nos anos 70, a emissão só começava às seis. Nas outras casas que, na minha, por causa dos pinheiros e dos eucaliptos, havia emissão de Canárias o dia inteiro. Tinha o senão de ser espanhol, nem sempre se acabava de ver os desenhos animados ou o filme de cowboys quando a imagem se enchia de arroz, mas isso era um detalhe para quem estava habituado às dificuldades de viver naquela curva de caminho.