Cicatrizes que o amor revela
Quando amar não é refúgio, é revolução
Visivelmente incomodada, cravou-nos um olhar de repulsa. Mediu-nos de alto a baixo e sentou-se duas filas à frente. Pouco depois, enquanto eu filmava um ato explícito de racismo contra um jogador, a mesma mulher, branca e influente, que antes me cumprimentava com falsa reverência, disse-me, com a “alma enraizada no ódio”: “Vocês nem aqui deviam estar!”. “Vocês”? Eu, no meu lugar cativo de jornalista, e o meu marido, que tentava conter os ímpetos do agressor ao jogador negro e agora também as ameaças à minha integridade física. Ao lado, uma ex-jornalista e assessora política, branca, assistia com satisfação, em silêncio cúmplice. Nos dias seguintes, espreitou as minhas redes sociais, não fosse eu expor o que vira. Não o fiz. Cedi ao apelo do meu marido (português de ascendência afro-libanesa) para não formalizar queixa. Até hoje, parte da minha consciência vive em desassossego.
Ao ler Cicatrizes, de Dino D’Santiago (Arena, Penguin Random House), senti o coração abrir-se, como se cada página me devolvesse pedaços de uma verdade antiga, dessas que nos habitam e deixam cicatriz. Este livro é uma chave: lê-se até ao fim e algo se transforma. Porque aquilo que é verdadeiramente visto, nunca mais pode ser negado. Precisamos de coragem para encarar o peso da exploração, do colonialismo e da violência, e de um compromisso firme, honesto na cocriação de um mundo mais justo, onde todos possam viver com dignidade. Ver é o primeiro passo. Resistir e transformar vem depois.
“Ao abraçar quem fui, permito-me e, finalmente, sou.” Talvez esse seja o gesto mais corajoso: abraçar quem fomos, para podermos amar quem somos. E, assim, amar o próximo em plenitude.
Amar um homem negro, neste Portugal do século XXI que ainda confunde diferença com ameaça, é viver sob escrutínio de olhares pesados, onde muitos gestos são sentenças silenciosas.
A melanina vira rótulo num mundo que julga antes de conhecer, somando cansaço a quem precisa continuar a provar o óbvio: que é digno, capaz, humano.
Quando escolhi amar um homem negro, percebi, e as minhas filhas também, o quanto o racismo é sistémico, estrutural, institucional e subtil. Infiltra-se nas conversas, nas piadas, nos silêncios, nas omissões. E como, sendo branca, cresci numa bolha de privilégio invisível: o de não precisar justificar a própria existência.
O amor trouxe críticas, perguntas, comentários inenarráveis e pessoas que se afastaram.
“Os filhos pagam os pecados dos pais e o teu combateu em África. Chegou a hora do acerto de contas e vai ser com o que de mais precioso ele tem: tu, Rita.” Crueldade que pairava dias no meu inconsciente antes de se dissolver como pó. Cortei relações. Hoje, vejo-os a deambular pelos meus stories, numa espera silenciosa, à espreita do fim do meu casamento. Já o meu pai orgulha-se do genro negro, a quem quer como a um filho.
“Vais ser uma carta de alforria”, “vai usar-te e descartar-te”, “estás mesmo cega, vocês não têm nada a ver!”, “que futuro achas que vais ter ao lado dele, acorda!”, “isso tem piada agora que é exótico, mas já passa”… se vos contasse o que ouvi de brancos que dizem não ser racistas.
Há preconceito em Portugal. Há racismo em Portugal. Está nas ruas, nas escolas, nas empresas, na polícia - eu bem vejo como a ‘bófia’ olha para ele(s) - e, acima de tudo, na negação.
O racismo em Portugal não é passado. É presente. E o amor, neste contexto, é a mais bela forma de desobediência.
Nesta viagem com Dino, percebemos o quanto o amor, quando é verdadeiro, se torna também uma casa onde a infância ferida pode, finalmente, descansar. Porque o amor não apaga cicatrizes: acende-as. E as dores herdadas não se curam com o esquecimento, mas com o reconhecimento.
O que não é visto, repete-se. O que é acolhido transforma-se em força, pertença e legado.
“O corpo negro, tantas vezes marcado pelo olhar dos que o veem como outro, é uma metáfora, um espelho das violências do passado.” O corpo é o lugar onde a história se escreve em silêncio. Nele, ferida e cura coexistem: lembrança e renascimento.
Penso nas mulheres que ensinaram gerações inteiras a ler, como a minha querida sogra, professora primária. São as mulheres de que Dino fala: mães de ferro, quase invisíveis aos olhos do mundo.
“O verdadeiro perigo não reside apenas nos rostos daqueles que clamam por um regresso ao passado, mas também na nossa capacidade de responder com compaixão.” A compaixão é lucidez: ver o que dói sem desviar o olhar. Reconhecer que a liberdade de uns depende da coragem de todos.
Dino escreve sobre redenção, pais e filhos, e o instante em que o amor se torna oração: “Hoje, o meu maior mandamento é este: amar-me é a única forma de falar com Deus.”
É isso. Amar é o verdadeiro ato espiritual. É olhar o outro sem o querer mudar. É escolher, todos os dias, não reproduzir a violência herdada.
Só um homem com valores humanistas, que conhece na pele a exclusão é inteiro o bastante para amar, em plenitude, uma mulher como eu, com duas filhas diferentes.
O amor que vivo é síntese, não oposição. Ele, corpo que sustenta a ética, ação consciente, força que protege sem dominar. Eu, palavra que dá sentido, pensamento e gesto que humanizam a força.
Não é estranheza é símbolo de evolução relacional: duas almas adultas, com cor, cultura e linguagens diferentes, alinhadas em intenção e propósito.
Porque o amor maduro é o lugar onde o corpo e a mente descansam do ruído do mundo.
Amar um corpo negro é amar a humanidade inteira. É reescrever a história, é desafiar uma cultura que ainda se alimenta do esquecimento e da distorção.
As cicatrizes não doem quando são vistas com amor, doem quando são negadas. Porque o amor não é refúgio. É revolução. “Não é precisamente isto de que precisamos agora? Escolher o amor como a única resposta possível para o caos em que mergulhamos?”