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Isto (não) é o Nepal

Costuma-se dizer que não é fácil ser filho único. Não sou, mas imagino. Imagino ser único e lidar com alguma solidão, a expectativa de ser perfeito, a falta de irmãs e irmãos com quem saber interagir e saber partilhar. E, talvez, a falta de conselhos úteis de quem nos é próximo mas não é autoridade. De orientação quando se perde o norte. Comungar experiências diferentes com quem nos é próximo. Esta analogia é muitas vezes usada para ilustrar um pequeno e remoto país da Ásia, o Nepal.

Este território é de fato único. Com a forma de um retângulo deitado, em que a Espanha deles é a Índia a sul, e o nosso Atlântico é a China deles a norte. O Nepal vive ensanduichado entre os dois progenitores, estes dois gigantes populacionais e, no futuro, entre estas duas prováveis maiores potências económicas.

A norte, a maior cordilheira de montanhas do mundo (Himalaias) separa-o da China. A sul, a sua planície fértil continua para a Índia. A norte predominam o budismo (e nuances do confucionismo chinês). A sul o Hinduísmo é muito prevalente. Apesar de bem diferentes, vivem em harmonia de séculos e é frequente ver templos com ícones das duas religiões, frequentadas por ambos crentes (a prática do cristianismo e do islão é muito rara e esparsa).

É um país muito diversificado. Existem mais de 70 grupos étnicos, inúmeros dialetos e diferentes culturas que convivem com um elevado nível de tolerância, muito pela postura de respeito reinante na sociedade nepalesa. A sua própria geografia é “impossível” do Nepal e até facilita essa diversidade, mas é também causa de sofrimento milenar. No Norte, os Himalaias são a “casa” da centena de montanhas (com mais de 7 mil metros) existentes do mundo. Viajar é sinónimo de longas caminhadas ou de um helicóptero. A Sul, as chuvas das monções destroem regularmente a maioria das estradas, pontes e outras infra estruturas, quando não pelos mais destrutivos terramotos. Os ciclos de construção e reparação são eternos.

Viver ensanduichado não é bom. São confrontados com duas realidades bem diferentes e por vezes rivais. Assim, quando a Índia e a China lutam, o anão a meio usa a sua única arma, a diplomacia, a neutralidade e a tão útil atitude confucionista do Xiao/Zhong: a obediência e lealdade ao patriarca e, genericamente, respeitado todos os indivíduos e facções, com a família acima de tudo, aceitando serenamente a dedicação e o sacrifício pessoal.

A incorporação do Tibete na China, a repressão do budismo, a emigração forçada de crentes e perseguidos, foi um aviso sério para o Nepal. Apesar da China respeitar a independência do Nepal e ser agora o principal investidor na modernização do país, os desafios desta relação são patentes. A Índia e o Nepal têm fronteiras abertas e a emigração de nepaleses para trabalho na Índia é uma fonte importante de receitas da população, solidificando a relação milenar, no entanto a Índia é muitas vezes como potência colonizadora e a relação não é de iguais.

São muito raras as nações que nunca foram colonizadas e nunca foram colonizadoras. Pois adivinhem, o Nepal também não. Bem, o Império inglês bem tentou, mas perderam a batalha em 1816 e desistiram. Na verdade, admiravam tanto os guerreiros nepaleses (Gurkhas) que ainda hoje mantém uma brigada inteira de nepaleses no exército inglês. É a máxima, se não os vencer, junta-te a eles.

O Nepal é um país pobre, muito pobre mesmo. Já bastava não ter nenhum acesso ao mar, e na verdade, nunca teve sorte com os seus governantes. Desde a monarquia absolutista, faustosa, que comprava carros antes de haver estradas. E que foi intolerante com as dissidências. Só aceitou alguma democraticidade após a guerra civil maoista dos anos de 1990. Acabou por implodir em junho de 2001 quando o príncipe herdeiro Dipendra, num suposto ato de loucura, assassinou quase toda a família real, inclusive o Rei, a Rainha, irmãos e tios por, supostamente, não poder casar com a sua namorada indiana. Suicidou-se. Este regicídio abriu portas à República do Nepal em 2015. As instituições estatais são frágeis, o Estado é subfinanciado, a população não tem a proteção social, saúde e infraestruturas adequadas a uma vida moderna.

O poder é corrupto, e o sentimento de revolta só não é maior pois a população é pacífica. No entanto, em setembro tudo mudou e a população pegou em armas e fez um “mini” 25 de Abril, mas ainda é cedo para avaliar as consequências.

Tive o privilégio de estar novamente no Nepal, desta vez por um longo período. De interagir com a população. Lidar com as dificuldades e perigos das suas altas montanhas. Constatar o seu isolamento. Na verdade, é difícil encontrar um país tão diferente de Portugal. Se a pobreza me tocou, o mesmo fez a gentileza e serenidade do povo nepalês. Mas as diferenças são manifestas e quem emigra do Nepal para Portugal certamente estranhará. E o oposto na mesma medida. E qualquer processo de integração é complexo, talvez não tanto como com países de outras religiões.

Será uma realidade que iremos aceitar? Num mundo em que quem foi rico e colonizador está a deixar de o ser. E em que os nossos valores já não podem ser impostos aos outros com a mesma facilidade. Em que outros valores alheios nos estranham, e não vão entranhar em nós. Em que os gigantes económicos já não são os mesmos. E em que países pequenos e pouco influentes (como estes dois) só sobrevivem e prosperam numa constante redefinição de parcerias e prioridades. A vida é um certamente um jogo, a humanidade não para de evoluir, até de forma imprevisível, e certamente o omnipresente está a “dar as cartas” mais uma vez!