A droga que nos consome
Na infância, ouvimos os nossos pais clamarem a nossa sorte de sermos crianças. Quando somos jovens adultos apercebemo-nos dessas afirmações anteriormente auguradas pelos nossos pais. É uma contemplação amarga que põe sempre em causa a quantia de aproveitamento que realmente extraímos dessa época. E à primeira vista pode até conduzir a um certo regozijo nostálgico, em que saltamos de memória para memória, sempre em busca de uma mais icónica. O problema é que a visão compõe-se turva e desvanece-se à medida que tentamos compreender a singularidade desses enredos infantis.
Eu podia ter tido diversas desilusões amorosas, podia ver o meu clube descer de divisão inúmeras vezes, mas nenhuma delas me causaria tanto sufoco mental como a nostalgia. Esta é uma droga que nos consome e é difícil de vislumbrar o término do seu consumo. Conduz-nos a efeitos de êxtase memorial, iludindo-nos com um ressurgimento de vivências marcantes e sedutoras. A experiência é revestida de lã de cordeiro, e a sua irrepetição são os uivos pérfidos que findam esta ilustre analogia. A ressaca é avassaladora, sem conceder um único laivo de empatia. Aconteceu e vírgula. Foi incrível e ponto. Agora nunca mais voltarás a experienciar tais momentos e parágrafo. E o parágrafo que a vida nos dispõe, que sucede aos tempos em que éramos inócua mas estritamente felizes, é desolador.
É um parágrafo envolto em problemas, dores, responsabilidades, em constante propagação. É um parágrafo quase robótico, em que refazemos a rotina interminavelmente, e em que se extraem poucas experiências inovadoras. Talvez esteja a ser injusto e imensuravelmente pessimista mas o que me parece é que, de facto, por mais experiências novas e arrebatadoras que possamos ter, a verdade é que a vida de criança é muito menos monótona que a vida adulta.
Afonso Cruz afirma no seu livro Flores que “(…) viver é (…) aquilo que não fazemos todos os dias.” E ser criança é precisamente isso. Isto porque as crianças estão a fazer tudo pela primeira vez. Tudo lhes parece inédito. Há um ambiente etéreo de ser criança - as cores são mais refulgentes, as emoções são absolutas, as texturas são mais chamativas. Claro que também há o bichinho da repetição alocado nas leis motrizes dos cérebros infantis mas é legítimo. Querem brincar de novo porque podem cair doutras maneiras, podem correr mais devagar ou mais depressa, podem saltar noutras circunstâncias que proporcionarão outras experiências diferentes. A vida adulta abandona grande parte da imprevisibilidade, muito por culpa dos inconvenientes que daí poderão derivar, e, com isso, perde a sua escama de pureza.
A saudade desmedida que nos seduz para o passado de criança pode até nem ser real. Podemos nos estar a esquecer dalgum ralhete que tenhamos levado, dalguma lapa feita depois dum carrinho no campo sintético da escola ou dalgum momento em que tenhamos presumido a morte da nossa mãe quando as aulas acabavam às seis e meia da tarde, os ponteiros ditavam seis e quarenta e sete e a nossa mãe ainda não tinha chegado. Nós concedemos uma filosofia estóica à criança que habita na nossa sequela nostálgica. Focamo-nos apenas nas lembranças mais ternas. E é aí que nos afogamos.
Existe uma corrente de comentários, creio que intemporal, e transmitida de geração em geração, que procura escamotear na íntegra, o enxovalho dirigido às gerações mais novas. E eu não gosto de acreditar na ideia de casmurrice, da presunção desesperançada do fim da humanidade pelas mãos das novas gerações. Parece-me uma conclusão extrapolada, demasiado fria e também ela desesperançada. Prefiro o rumo mais empático e compreensivo. A legitimidade que concedo à frequência destes comentários pejorativos é o facto de serem ex-crianças, lesadas da vida adulta, obrigadas a crescer. Eles já chegaram ao posto desconfortável dum ser humano adulto. Não consigo crucificar a revolta que pernoita, diariamente, com eles. Nem toda gente tem a crua e insensível capacidade de aceitar a impossibilidade de tornar a ser criança.
Tenho 22 anos e, como diz o VSP AST, um dos artistas que mais aprecio da minha geração, “Sinto que nunca vou chegar a ser adulto”. Não vejo a luz ao fundo do túnel que me permita prosseguir com a monotonia da minha vida. Sou um nostalgicodependente e não existem clínicas de reabilitação. Não sei quanta dose tomei desta vez, tão pouco imagino o fim desta moca, mas agradecia que alguém me trouxesse um copo com água e um torrão de açúcar, que estou encharcado em suor a escorrer da testa.
Henrique Drumond